A Crunha: promontório ou fundaçom divina?

Já se anunciou no artigo anterior. Está na hora de falar da Crunha (graf. isol. A Coruña) e das suas possibilidades etimológicas. Na nota a respeito da toponímia de Compostela já se avançava a ideia de que as interpretaçons etimológicas de determinadas palavras, e notadamente dalguns topónimos, tenhem mais a ver com a exigência comercial do turismo do que com a linguística. Pode que muitos topónimos fiquem à margem dessa influência espúria, mas, sem dúvida, onde haja turismo haverá também interpretaçons para todos os gostos. A Crunha, é claro, nom vai ser umha exceçom.

À partida, há quem assinale (Caridad Arias, 2004: 288) umha etimologia relacionada com o titã da mitologia grega Crono (Κρόνος, nom confundir com Chronos: Χρόνος), através da equivalente forma celta de Cruinne, que apresenta a característica antecipaçom celta do -i- desinencial da forma *Crunni. Esta hipótese situa o topónimo na época de comércio grego-fenício cara às ilhas británicas via Kalaikia, na época em que habitava a zona a tribo dos ártabros. Sem dúvida, por esta via resulta muito favorecida a mitificaçom acima referida, se tomarmos em conta que, para além de Crono, estariam lá Hércules (Ἡρακλῆς) e até Geriom (Γηρυών ou Γηρυόνης). Sem renegar a proposta de Caridad Arias, nom deixa de resultar curiosa essa teima de situar heróis homéricos nas origens de mais vilas galegas — eis o caso de Teucro em Ponte Vedra.

Península da Crunha, com a torre de Hércules ao fundo

Outra opçom seria a que faria derivar a Crunha de umha possível evoluçom do latim acrunia, com o significado de «península», tanto nessa forma como na sua variante aclunia (considere-se a duplicidade fonológica -cl-/-cr- presente em muitas línguas do sul europeu e que é bem conhecida também em idiomas modernos como o próprio galego-português).

Seja lá como for, e sabendo que ambas as formas coincidiam e nom eram mais do que puras variantes reciprocamente, interessa notar como já no s. XII se estaria a produzir a desagregaçom da vogal inicial como falso artigo (ver, neste caderno, Artigo ou mutilaçom?). Sem dúvida, durante o século XIII aparecem formas como «áá Crunia», «da Crunia» e «da Cruna», e até um «La Crunia» em 1262 que alguns quiseram utilizar para demonstrar (!) que a forma «La Coruña» nom é umha simples deturpaçom bárbara da Crunha.

À margem dessas intençons, Clunia está também presente na origem de topónimos como a Clunia alpina, o Cluny da famosa abadia da Borgonha, e a Clunia Sulpicia, hoje Coruña del Conde, na atual província de Burgos. Nom parece, porém, que esse clunia provenha de aclunia/acrunia.

Antes ao contrário, teria sentido próprio, provavelmente relacionado com um outeiro ou umha elevaçom do terreno: umha «cuinha», forma que na Galiza existe com esse significado. Neste caso, o falso artigo nom seria assim tam falso, e teria aparecido com valor justamente de artigo, de modo que “a clunia / a crunia” significaria, simplesmente, «o outeiro» ou «o promontório». Em qualquer caso, o facto de que a forma moderna seja crunha e nom *chunha, como teria sido numha evoluçom patrimonial da palavra, indica que o passo clunia > crunia se deveu produzir muito cedo.

Tanto no caso de ser tratar de um acrunia como no de um crunia, o topónimo estaria a recolher características morfológicas dessa zona, porquanto a Crunha é, com efeito, umha península e, à vez, um outeiro ou promontório muito significado sobre o mar, neste caso, Ártabro. O que se encontra é, em qualquer caso, o étimo *kor (ainda, *kor(n)-, *kar(n)- ou *ker(n)-, com valor orónimo de pedra, promontório, protuberáncia e dureza, que está presente em palavras como «corno» (lat. cornus, gre. keras) ou «curota», mas também em «carvalho» (através da característica dureza da sua madeira), e em topónimos como Cornualhes (Kernyw), ou os máis próximos Corcubiom, Corme, Carinho, Carnota ou Corrubedo — todos eles na escarpada costa galega a passarem o mesmo significado de promontório agreste aberto sobre o mar.

Enfim: parece lógico pensar que, em lugar de explicaçons que envolvem deuses gregos, é a forma pré-romana *kor-/kro-/kru-, com a sua variante fonética em -l-, a que esteja por trás do topónimo crunhês, tanto se o nome que recebeu foi inicialmente crunia ou acrunia, pois nada indica que provenham de diferente raiz. O que fica absolutamente descartado é a repetidíssima identificaçom da Crunha com a Brigantium fundada polos romanos, e que tratarei noutro momento, e, ao mesmo tempo, o que fica por saber é sob que forma concreta (acrunia ou crunia) apareceu esse nome no lugar concreto da atual Crunha.

3 respostas

  1. A modo de atualização: recentemente soube que em Gijão, na vizinha Astúrias, existia um pequeno outeiro que também fazia de conta de promontório sobre o mar, e que recebia o nome de Monte Coroña, isto é Monte Coronha. Escrevo em passado porque, pelos vistos, o Monte Coroña foi engolido por um estaleiro gijonês e já faz parte da toponímia perdida. Enfim: isso que chamam de "progresso"!

  2. Houvo um tempo em que lhe dei bastantes voltas a este topónimo, e cheguei a suspeitar se nom terá algo a ver (polo menos na sua etimologia remota) com o apelativo "corunha", recolhido por autores como Elígio Rivas Quintas com o significado de "hueso de fruta, como ciruela, cereza etc.".

  3. Concordo com Ulmo:
    Crunha é palavra viva no galego, no galego-português, e vem sendo carambunha, si.
    Do mesmo jeito que Caiom, está mui próximo a coiom, coio grande.
    A Crunha em tempos foi um ismo areoso e um promontório de rochas, lugar "secundário" afrente a "capitalidade" portuária do Burgo, porém facilmente com nome "secundário" ou quase pejorativo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.