Os nomes do país são também, em justiza, os nomes das pessoas que o habitam. Sendo a toponímia uma parte da onomástica, não temos, porém, prestado muita atenção neste caderno aos nomes de pessoas. Temos a exceção do compêndio de antropónimos germânicos, pola sua alargada implicação na produção toponímica, e dos falsos antropotopónimos Marta/Martim e Mariola ou Suso/Susana, mas justamente para dizer que não correspondem a nomes de pessoa.
Contudo, no ânimo de ir corrigindo esta ausência, iremos reparar agora numa prática hoje desaparecida, mas que enriquecia a nossa língua não há tanto tempo. A flexão de género aplicada aos apelidos.
Estandardização da forma masculina
No século XIX, no final do Antigo Regime, os Estados — também o espanhol — começaram a legislar em relação ao modo como as pessoas adotavam os seus nomes e apelidos. Não foi por acaso, mas como consequência de todo um sistema de proteção da propriedade privada que surgia naquele momento ao passo da emergência da burguesia como nova classe principal, se ainda não dominante.
Até àquele momento, a escolha e o uso dos apelidos ficava dentro do âmbito privado das pessoas. O resultado final — tendo em conta que uma mesma pessoa podia trocar de apelidos ao longo da sua vida — costumava depender da tradição, da origem familiar, da necessidade de autoprojeção, etc. Eram habituais, com efeito, as famílias em que os apelidos de pais e mães não se correspondiam diretamente com os apelidos da descendência. Aliás, até era frequente irmãos e irmãs terem apelidos diferentes entre si.
Nessa diferenciação dos apelidos não se incluem, é claro, os apelidos patronímicos: aqueles com o significado «filha/o de…», que também foram imensamente frequentes durante toda a Idade Meia, e que deram os Rodrigues, Gonçalves, Gomes, Peres, Pais, Martins, Eáns que ainda hoje temos (filhas e filhos de Roi, Gonçalo, Gomes, Pedro, Paio, Martinho, João, etc.)
eu Aldonça Rodriges, filla de Roy Gonçales, notario que foy do couto de santo Esteuo de Riba de Sil
Subaforo do priorado de S. Vicenço do Pombeiro, ano 1418. TMILG
No fragmento a continuação — que é apenas um exemplo em forma de carta de pagamento escrita polo notário de Rianjo e Posmarcos, Álvaro Peres de Ponte Vedra, em data tão serôdia (para o uso escrito do galego) como 1457 — a Maria Gonçales não leva o apelido de seu pai, Vasco Chico, nem da sua mãe, Tareyia Ares, nem do seu titor, Johán Ares de Figueyroa, nem do seu marido, Afonso Peres.
Este dito día, o dito Vasco Chico, padre dos menores, como seu gardador, e Johán Ares de Figeyroa do Araño, como tutor dos ditos moços, por sy e en seu nome, e así mjsmo Afonso Peres, por si e en nome de María Gonçales, súa moller, filla do dito Vasco Chico e Tareyia Ares, diserõ que se dauã e derõ por entregos, cõtentos e pagos de toda a parte dos bẽes mobles que aos ditos menores perteesçíã.
Carta de pagamento de 1457. TMILG
Portanto, durante séculos coube aos apelidos uma extrema plasticidade, e à sua perpetuação uma enorme dependência do azar. E isso para já não contar com as variantes que um mesmo apelido, às vezes mesmo da mesma pessoa, podia apresentar em função do escrivão que o fixasse no papel, das condições históricas, das diferentes realizações ortográficas, etc.
A estandardização do sistema de apelidos, polos motivos apontados acima, veio a coutar aquela flexibilidade e a definir um sistema, pola primeira vez, para a transmissão do nome da família. Foi escolhida como base — sem surpresas e com poucas exceções — o apelido do pai. Já o uso do apelido materno só irá chegar posteriormente. A estandardização, contudo, não só acabou com o que na altura se deveu considerar um caos paralisante. Limitou também ao registo popular o fenómeno da flexão de género num grupo concreto de apelidos: os que poderíamos agrupar na classe dos sobrenomes.
O apelido como adjetivo
Na geração de apelidos da nossa língua, três grupos resultaram ser particularmente produtivos. Em primeiro lugar, os apelidos patronímicos — Fernandes, Bieites, Lopes, Vasques, etc. — de que já falamos acima. Em segundo lugar, os apelidos toponímicos — Bouça, Ilhám, Branhas, Catoira, Trasorras, Mourentám, etc. E, por último, os apelidos de tipo qualificativo, nascidos de um elemento caraterizador da pessoa ou da sua família. Essa caraterização ou qualificação podia chegar através de traços visuais distintivos — Crespo, Mourinho, Gago, Branco, Ruzo —, da profissão — Ferreiro, Torneiro, Cabaleiro, Capelám —, ou doutros elementos diferenciais.
Se é verdade que já os nomes próprios funcionam como adjetivos — quando menos morfologicamente, pola sua capacidade flexiva quando a número e género (Filipe / Filipa, Júlio / Júlia, Luís / Luísa, etc.) —, essa capacidade foi muito mais evidente no caso dos apelidos deste grupo qualificativo, que semanticamente faziam a função de sobrenomes. Isto não acontecia com os apelidos patronímicos, que até à estandardização costumavam depender do nome de batismo do pai; nem com os toponímicos, que polo geral permaneciam fixos.
De maneira que ao lado de homens com apelidos como Crespo, Gago, Mourinho, Branco, Ruzo, Preto, etc. podiam aparecer, e apareciam, mulheres com apelidos Crespa, Gaga, Mourinha, Branca, Ruza, Preta, etc.
Marinha Crespa, sabedes filhar
Pero da Ponte, ca. 1240-1300
eno paaço sempr ‘ un tal logar,
en que an todos mui ben a pensar
de vós; e poren diz o verv ‘ antigo:
“a boi velho non lhi busques abrigo”.
Nos Estudos de Onomástica Galega de Gonzalo Navaza (2017), aparecem citados vários casos de documentos onde a flexão de género está ainda perfeitamente viva e aparecem ao mesmo tempo a forma masculina e feminina:
Pedro Gago – María Gaga, ano 1656; Cristovo Preto y Ana Preta, ano 1668; Gregorio Crespo y su hixa Librada Crespa, ano 1702; Inés Mouriña […] madre que fue de Matías Mouriño, ano 1702.
G. Navaza, 2017.
Uma recordação de Maria Solinha
A esse grupo pertence, por fim, a Maria Solinha, aquela canguesa nascida em 1601 e torturada e assassinada finalmente polo Santo Ofício, sem data conhecida, acusada de bruxaria, e que deu origem a muita literatura oral e também escrita.
Polos caminhos de Cangas
Celso Emílio Ferreiro. Longa Noite de Pedra. 1962
a voz do vento gemia:
ai, que solinha quedache,
Maria Solinha.
A transformação daquela «bruxa» em figura popular e a inúmera produção cultural à sua volta, em forma de poemas, canções, peças de teatro, etc., alargaram a ideia de que a forma Solinha — confrontando-a com a forma Solinho do seu irmão Antom — corresponde a algum tipo de «etimologia popular» ou «reelaboração literária».
E, com efeito, foi resultado da produção popular, mas não como um invento ou uma fantasia. Maria Solinha, Maria Gaga, Livrada Crespa, Ana Preta tinham um apelido feminino porque eram mulheres. E o que terminou com essa prática flexiva ou, no melhor dos casos, a reduziu apenas a algumas alcunhas que conseguem substituir os apelidos — exceto nos papéis — não foi outra cousa que a modernidade homogeneizadora.