Os territórios políticos da antiguidade sobreviveram em muitos casos, tanto na sua concepção geográfica ou espacial, quanto no que diz a respeito do seu nome. Hoje, é possível rastejar corónimos pré-romanos nos nomes das nossas comarcas e, nomeadamente, das demarcações geográficas da hierarquia católica. A divisão geográfica é interessante por si própria, como parte da história do país, mas também o é para a toponímia e, sobretudo, para o caso concreto dos corónimos. O que vem a continuação é apenas uma série de apontamentos sobre a organização territorial na Gallaecia desde a época pré-romana, mas com referências na documentação romana, até ao século VI e a ré-organização sueva. São apenas apontamentos introdutórios, e portanto não deve procurar-se neles qualquer exaustividade.
1. LIMITES
Como para todo território, interessa considerar quais são os limites, isto é, até onde é que um território existe — e se nomeia de determinada maneira — e também o modo como, em geral, os territórios são delimitados. No fundo, o que um território importa é polos limites que estabelece e pola sua capacidade para separar e resguardar, neste caso, como iremos ver, a soberania —seja soberania nacional, desde o século XIX, seja soberania administrativa em função de relações de vassalagem multinível, como aconteceu na Idade Meia e já antes. De maneira idêntica à atualidade, os territórios pré-romanos e suevos eram então delimitados por elementos significativos, a maior parte dos quais eram fitos naturais com base em elementos e acidentes geográficos significativos, às vezes inclusive com valor mágico-propriciatório, como penedos figurativos, seixos brancos (saxas albas), etc. Estes elementos conformavam os marcos, que na documentação medieval aparecem também com a forma latinizada coriae, isto é, coiras. O facto de ser uma forma latinizada aponta, com efeito, para um uso anterior à romanização e, portanto, à existência de divisões e estruturas pré-romanas recolhidas posteriormente na estrutura interna das provinciae romanas, de onde passou à idade meia.
Outras coiras podiam ser elementos artificiais — humanos — pré-existentes, aos que se lhes reconhece uma determinada singularidade. Podiam ser, por exemplo, mesas ofertórias neolíticas com fossetes (cupmarks, burgários na documentação medieval), túmulos neolíticos (lacos anticos, lacunas ou lacunellas na documentação medieval), mámuas, arcas, armadas, etc. A respeito das Lacunas, veja-se a existência de orónimos Lagoa, Lagoela, etc., aparentemente contraditórios no seu significado. Por outra parte, a correspondência pré-latina dessas ocorrências de lacus é o termo ‘pala’, que se mantém com valor apelativo na atualidade referindo uma pedra oca pola sua parte inferior e, por extensão, um buraco numa pedra. (veja-se também a toponímia Pala, neste caderno).
2. CONCEITO E EVOLUÇÃO
O que fica dentro dos limites estabelecidos polas coiras é um território de carácter político, na medida em que a sua divisão é humana e responde a uma organização económica (estrutural), com as suas derivadas superestruturais. Em qualquer caso, o território político antigo, desde a época de povoamento celta até à do reino suevo, recebe diferentes nomes, como se irá ver.
Celtas
O estabelecimento do poder romano mostra como os invasores aproveitaram a estrutura hierárquica e organizacional pré-latina, e até mantiveram a maioria dos seus nomes anteriores, o que, por outra parte, era avondo comum no caso do império romano. Se quisermos traçar uma evolução também dos nomes que as diferentes culturas deram ao conceito de território, devemos começar polo conceito de castro (que também aparece como castellu), que é, aliás, o conceito que mais se associa com os celtas. É comum interpretar o castro como um recinto fortificado, povoado por casas de plano circular onde morar. Trata-se de uma ideia avondo reduzida do que um castro era. Porque, em primeiro lugar, deve considerar-se que nesses espaços, especialmente angostos, teria sido impossível desenvolver qualquer atividade económica, de modo que esta deveu desenvolver-se fora da área fortificada. Evidentemente, as zonas de trabalho dependiam também dos espaços fortificados. O castro é, portanto, a zona fortificada, mas também as suas dependências económicas ou, por outras palavras, a sua área de influência política direta.
Os castros, porém, não eram entidades isoladas da sua contorna nem doutros castros. Mesmo entendidos como espaço de soberania nobre, com o seu valor económico e social, estavam organizados numa instância superior, dominada por um princeps como autoridade ordenadora no marco de um território político de ordem superior. Aqui entra o segundo nível territorial, que tem ocupado muita menos literatura: a treba. O conceito de treba, de origem induvitavelmente celta (ir. trebad ‘casa’) e com valor de ‘território político’ em Irlanda e noutras áreas claramente celtas, está relacionado, como é evidente, com o de tribo e com o de tributus, que é o pagamento (portanto, relação de vassalagem) a uma realidade política, for nobreza ou território de soberania.
Os celtas organizaram-se na Gallaecia, sem dúvida, em trebas —ainda quando talvez utilizassem outra palavra— que consistiam em âmbitos socio-económicos mais ou menos amplos dominados por relações de vassalagem com o proprietário e senhor de um castro. A palavra treba em questão, com efeito, apresenta poucas ocorrências documentais, inclusive entre os autores latinos: em concreto, apenas aparece na literatura quando Plínio nomeia a tribo Arrotrebae isto é a tribo dos da Terra dos Arrões. No registo epigráfico há outras ocorrências, mas não muito mais numerosas: na inscrição rupestre de Rigueiral (Sanfins, Valpaços) aparece o epígrafe TERMIN(US) TREB(AE) OBILI(ORUM), isto é: “término da treba dos Obili”. Por outras palavras, uma mais uma coira que delimitava, neste caso, uma treba.
O aspecto relacional entre os diferentes castros e a sua treba aparece também na epigrafia, polo geral, através dum C invertido “)” colocado entre o nome da treba e o nome do castro. Por exemplo, temos Susarrus ) Aiobaiciaeco; Limicus ) Arcuce; ou Celtica Supertamarica ) Iureobriga, traduzíveis por o castro de Aiobaiciaeco no território (na treba) dos susarros, o castro de Arcuce no território dos límicos e Iureobriga no território dos celtas supertamaricos. Ademais, na documentação literária, o signo ) aparece substituído por “castellum” ou por “domo”.
A treba configura-se assim como espaço auto-reconhecido, composto por uma sucessão de castros que, por sua vez, são também territórios de soberania autárquica e funcionam como clientes (lat. clino ‘inclinar-se’).
Romanos
A chegada dos romanos e o estabelecimento do seu poder não modificaram substancialmente esta organização. As trebas e os castros foram substituídos polos populi e as civitates, mas nada foi muito além de uma mudança puramente nominal. Evidentemente, com a incorporação ao império, a estrutura romana foi imposta e os espaços de poder pré-romanos recolhidos polos geógrafos latinos como Pompónio Mela ou Plínio ficaram apenas num nível interno se comparado com a estrutura de provinciae (e as suas reformas augustana, antoniana e diocleciana — que estabelece por fim a província da Gallaecia), por sua vez divididas em conventi (para a Gallaecia, as fontes citam o Asturum, o Lucensis e o Bracarum). Mas dentro desses, as civitates não deixam de expor a mesma estrutura de poder que já vinha dos castros. Ainda, muitas das civitates romanas serão apenas castros transmutados, mas com as suas capacidades de ordenamento dos populi inalteradas em grande medida. É mais: conservando amiúde os nomes que, com efeito, legam para a seguinte época, já depois do império, com o estabelecimento do reino suevo.
Suevos
Mesmo na Alta Idade Meia, quando as províncias se desmoronem perante o surgimento dos novos reinos ocidentais (a começar polo suevo), os populi cederam o seu nome às terrae e aos territoria. Por outras palavras: o castro pré-romano, com a sua organização interna como território económico e político autárquico transfere-se então quase diretamente para as villae medievais, que são também territórios económicos e políticos autarquicos. Mudam os nomes, mas não as estruturas. E, do mesmo modo, as villae medievais serão tributárias de uns territoria controlados num nível superior, supra-vilego, às vezes vinculado com um senhorio leigo, mas mais comumente vinculado pola instituição que desde chegada do cristianismo se impõe como principal organização vertebradora da economia e a sociedade (e outras superestruturas, evidentemente) da Idade Meia: a igreja. A conversão maciça dos ovates pré-cristãos que se produz quanto em 314 o bispo da diócese galega de Beteka envia um presbítero ao concílio de Arlés impõe apenas uma mudança de credo, mas não das jurisdições em que se sustenta materialmente. Daí que a igreja galega mantenha as delimitações internas, isto é, os marcos ou coiras que já existiam.
Do mesmo modo que aconteceu em Irlanda duzentos e cinquenta anos mais tarde com a conversão de Ard-Ri, os ovates converteram-se então em abbones, mudando tudo para continuar igual. Talvez, com a única salvedade das cidades como elemento novo —sé do poder eclesiástico também, especialmente desde o século VI, se tivermos presentes os avanços de Anselmo López Carreira (1999).
Enfim: a situação só mudou de modo considerável no s. VI com a ré-organização impulsionada por Martinho de Dume e polo rei Teodomiro, feita desde a cima do sistema dos territoria, e cristalizando na Divisio Theodomiri, que marca o início da segunda época da organização territorial da Gallaecia, a partir do reinado suevo. Mas isso será para tratar noutra nota.