Das vendas, das mercas e das feiras

Andam os tempos cada vez mais económicos. Nunca tanta gente soube tanto tecnicismo nem tanta gíria económica, e talvez nunca tanta gente soube menos de economia, polos vistos. Hoje vou fazer um pequeno contributo, referindo-me às vendas, às mercas e às feiras que povoam a nossa toponímia galego-portuguesa. A existência de topónimos relacionados com os étimos venda e merca parece relacionar-se de algum modo, complementariamente. E o termo feira, polo mesmo, parece englobar ambas as ações. Também na toponímia.

Diz Cunha que o topónimo Venda é viário e refere um “lugar onde se faziam vendas ou mercado à beira da estrada”. É possível, porque a palavra “venda” tem, com efeito, esse significado no contínuo galego-português. E mesmo poderia dizer-se do topónimo Merca, com o mesmo valor, embora com um significante complementar. Se, com efeito, se tratar de topónimos viários é outra questão, que não deixa por isso de ser possível. Com efeito, no galego-português medieval há constância de superposições funcionais, semânticas, do étimo venda com o significado de pousada, especificamente viário. Mas, como quer que seja, essa associação não parece que seja em absoluto obrigatória. E o mesmo pode dizer-se para feira. Do que não há dúvida, especialmente no caso de feira, é de serem oicotopónimos, isto é, topónimos relacionados, de algum modo, com as atividades económicas humanas, com atividades culturais e, por isso, com fenómenos não naturais, muito mais abundantes na toponímia.

Duas são as hipóteses que podem manejar-se a respeito do par venda/merca: uma aponta para uma origem latina do étimo, que teria passado a funcionar, com efeito, como oicotopónimo; outra aponta para a existência de um topónimo anterior, possivelmente céltico ou indo-europeu, como se verá, com outro tipo de valor semântico. Comecemos, porém, primeiro pelo caso mais doado: o da feira.

Pendelhos em Agolada

O topónimo Feira: feriado e mercado

Feira procede do latim feria, com o significado de ‘dia festivo’ e, por extensão, ‘dia de grande mercado’. O feria latino apresenta dupla evolução em galego-português que remete para esse duplo significado: férias para os dias festivos (não por acaso, o feriae latino tem na sua origem a forma fesiae, com a mesma raiz que festum ‘festivo’) e feira para o mercado — que depois irá também denominar correlativamente cinco dos sete dias da semana, tanto em Portugal como também na Galiza (embora na Galiza hoje fiquem apenas áreas reduzidas a utilizarem essa fórmula). Fora dessa extensão de significado, as feiras converteram-se, sem dúvida, numa das principais atividades económicas na área rural da Galiza e de Portugal, e daí procede a variada formulação toponímica que originaram, desde as múltiples ocorrências de Feira Nova e Feira Velha, ou de Campo da Feira, para microtoponímia e para toponímia geral, que aparecem massivamente representadas, até à toponímia que, mais surpreendentemente, aponta tais eventos no calendário: a Feira do Dous (Serantes – Ferrol), a Feira do Seis (Barrantes – Tominho), a Feira do Treze (Sedes – Narão), a Feira do Vinte (Taborda – Tominho); a Feira do Vinte-e-três (Tominho) ou a Feira do Vinte-e-sete (Vilouçás – Paderne), por citar apenas alguns casos da Galiza.

Topónimos complementares: as vendas e as mercas

Para explicar o significado destas duas formas toponímicas, pode apontar-se o facto de referirem, ambas, atividades que se faziam muitas vezes na beira dos caminhos, como ainda se faz agora e como, sem dúvida, se deveu fazer muito mais em épocas anteriores, quando estávamos menos contaminados pelos grandes supermercados e pela inflação de centros comerciais. Em tempos melhores, enfim, eucrónicos. Neste caso, a procedência latina seria evidente, e a continuidade de significante e significado faria todo o sentido, já que a atividade não desapareceu nem passou a conhecer-se sob outro nome. Por esta via, Venda, com as suas múltiplas variantes, procederia do latim vendita, particípio de vendo, com o idêntico significado e procedente por contração, por sua vez, do sintagma venum do, isto é, ‘pôr à venda’. E, quanto a Merca, parece que esteja relacionada com o latim mercatus ‘lugar onde se vende e se compra (ou merca)’, proveniente do étimo merx, provavelmente etrusco. Trataria-se, então, de topónimos deverbais, com um valor económico e com uma poderosa referencialidade que explicaria, ao mesmo tempo, a sua expansão e o seu mantimento ao longo do tempo.

Ora, também se têm apontado outras explicações para os topónimos destas duas séries. J. J. Moralejo suspeitava que, como Bendanha, Bendoiro ou Vendabre, o topónimo Venda podia derivar, nalguns casos, de um *bend– indo-europeu, com o significado de ‘ponta montanhosa’ ou do proto-céltico *windo– ‘branco’. E, para Merca, Rosa Pedrero sugere que, como em Mirce (Melide), Miraz (Germade e Friol), possa ter a ver com o hidrónimo *mir-ko ou com o céltico *mer-g ‘roxo, rúbio’.

A favor da hipótese latina joga o facto de estes topónimos apresentarem amiúde formas de artigo, tanto em “A Venda” como em “A Merca”.  A existência desses artigos, na realidade, não equivale a qualquer prova incontornável, porque os artigos, como é sabido, poderiam ter sido adicionados mais tarde, por assimilação. Dado o volume de ocorrências de ambos os topónimos, o mais provável, ao meu entender, é que estejamos perante uma dupla origem: de maneira que uns topónimos procederiam das raízes célticas ou até indo-europeias, enquanto outros procedam, com efeito, de fórmulas latinas e galego-portuguesas medievais. E ainda mais, não descarto a possibilidade de se produzirem ré-significações e adaptações assimilativas do significante depois de perdida a referência semântica dos casos pré-latinos. Casos desse tipo já se viram e não devem estranhar.

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