Lisboa foi um porto feliz?

Noutra parte deste caderno já se falou do modo como a etimologia, ciência que nasceu ao abeiro do romanticismo, se coligou amiúde com o nacionalismo e o chauvinismo para produzir as mais imaginativas soluçons. Na Galiza, por exemplo, a Crunha estava fundada por Hércules, segundo asseguraram alguns, referindo-se ao faro que na atualidade se denomina Torre de Hércules, precisamente. Ponte Vedra, pola sua vez, era fundada por Teucro, e assim por diante. A ideia dessas fundaçons heróicas pode entender-se na Galiza como umha vontade, talvez, de superar a minorizaçom que os poderes centralistas pretendêrom sempre, desde o processo de Doma e Castraçom. Talvez. Disso saberám falar os antropólogos. Mas, mesmo que esses condicionantes operem aí, a referida tendência nom se dá apenas na Galiza.

De Lisboa diz-se que foi fundada por Ulisses, tomando como base umha lenda — por si pouco clara — transcrita por Estrabom. Outros notáveis figuram também lado com lado com Ulisses. Eis o caso da Elissa, princessa fenícia; também de Eliasser, da casa de Abraám; de Elis, bisneto de Noé; de Lysias, filho de Baco; ou até de por Luso, filho de Sículo. Ora, Lisboa, como todos os lugares, tem umha história bem mais prosaica, e, ademais, no seu caso particular, um topónimo bem esclarecido.

Cidade fenícia

Segundo Samuel Bochart e Carlos Rocha, o nome proviria do fenício Allis Ubbo, isto é «porto aprazível», em referência ao bom porto fornecido polo estuário do Tejo. É certo que nom há documentaçom que acredite a teoria, mesmo sendo a mais aceite. Os fenícios nom fôrom alheios a estas latitudes, como se sabe. Antes ao contrário, passava por aqui umha importante rota comercial que ligava o Mediterráneo com as ilhas británicas. Como quer que fosse, de Allis Ubbo é fácil tirar o topónimo latino Olisipo, e daí, por evoluçom, Olisipona. Aí entrariam já outros dois povos invasores: visigodos, com a sua adaptaçom Ulishbona, e árabes, com duas formas que se encontram em textos: al-Ushbuna (لشبونة) e al-Lixbûnâ (اليكسبونا), ambas de 714. E daí, seguindo apenas as normas de evoluçom patrimonial próprias do galego-português, nom deveria resultar difícil chegar a Lisboa.

Ora, esse Allis Ubbo nom deixa de resultar intrigante. Como refletiu Jorge G. Fernandes:

«não devemos acreditar nas histórias que nos contam dos romanos, neste caso de Júlio César, pondo nomes a torto e direito segundo estivesse mais ou menos bem disposto. Como se, a força da tradição, os costumes do povo aceitassem de bom grado e de modo generalizado a mudança dos nomes das terras de nascimento».

É difícil expressá-lo melhor e com maior singeleza. Entom entra aí a sua hipótese, que reforça a ideia de que esse allis significasse qualquer cousa do tipo de «felicidade», porque o nome romano dado a Lisboa nom era outro que Felicitas Julia, isto é, umha mudança de nome, mas umha conservaçom semántica que já é muito mais do que o capricho dos vitoriosos expressado ao modo de vim, vim, nomeei. De modo que esse allis poderia provir do semita *alilz ou *âlish, com o significado de felicidade, exultaçom, alegria, que hoje é facilmente visível no antropónimo hebreu Alisha, que significa «grande felicidade».

Cidade tartéssica

Quanto a «ubbo», poderia aceitar-se a proveniência fenícia, com o significado de porto ou enseada, caracterizada ademais pola sua forma natural em forma de estuário do Tejo (por certo, também com etimologia fenícia: Taghi); ou ainda poderia considerar-se etimologicamente o sufixo -ippo que aparece, com o significado de «cidade» (Villar, 2000: 92), em multidom de topónimos da área de influência tartéssica (ocidente da atual Andaluzia).

Segundo Almagro-Gorbea (2010: 188), conhecem-se por volta de cinquenta topónimos em -ippo, que estám por trás de cidades como Onuba (atual Huelva, gent. onubense) ou Ipses (atual Vila Velha, perto de Portimão), mas que abrangem todo o sudoeste peninsular, até rebaixar o Tejo. Almagro-Gorbea propom que aqueles topónimos em -ippo ao oeste do Guadalquivir se dessem por causa de umha segunda e mais parcial expansom, centrada nas desembocaduras do Sado e do Tejo.

Enfim: “ubbo” poderia ter substituído a forma “-ippo” tartéssica, por assimilaçom, passando de cidade a porto, e adicionando o adjetivo “allis” já referido. De modo que Lisboa poderia ser o porto aprazível, facilmente relacionável com o porto feliz ou da felicidade dos romanos. Um porto (tendo em conta o contexto marinheiro) seguro, que é o que justamente interessa.

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