“Ut, sicut episcopatus cathedram predecessores uestri in urbe, que Hilia dicitur, habuerunt, ita perenne deinceps tempore in ea, que Compostella dicitur et ecclesiam continet, in qua beati Iacobi corpus requiescere creditur, habere debeatis”.
— Bula Veterum sinodalia, do Papa Urbano II. Ano 1095.
Com estas palavras ordenava o papa Urbano II a mudança do bispado de Íria Flávia para a vila de Compostela. Não era uma decisão arriscada. Antes ao contrário, constatava pola via legal, ordenada, o que já era um facto. Que o locus sanctus compostelano se tinha convertido durante os dous séculos anteriores na referência principal do território do bispado, e que continuar com a sé em Íria (Hilia) não fazia o menor sentido. Sobretudo porque, aliás, em 1095, a enorme catedral que hoje admiramos levava já três décadas em construção (Rheidt & Nicolai), engolindo a anterior basílica consagrada em 899.
Ademais, com toda a lógica o fenómeno da peregrinação e as obras foram-se traduzindo num assentamento cada vez maior, criando à volta do sítio santo alguns pequenos casarios. Tomando como referência o séc. X, e tendo presente a paliçada do bispo iriense Sisnando II — que alargava o primitivo muro que pouco mais cercava do que a basílica e os seus edifícios religiosos contíguos —, o que encontramos é uma área de 30 hectares de terrenos cultiváveis e cinco primitivos bairros, já intramuros.
Locus Sancti Iacobi: o coração da cidade
O primeiro dos bairros, por direito próprio, é o Locus Sancti Iacobi. É o coração de uma cidade que, nessa altura e durante muito tempo, gira à volta da igreja com as relíquias. O locus correspondia apenas ao templo e aos equipamentos religiosos imediatos. A sul, o palácio episcopal e os espaços de habitação dos cónegos e frades destinados ao culto apostólico. A leste, o pequeno cenóbio de Antealtares e um casario colado à parte interior da paliçada. A norte, o hospital de peregrinos pobres criado por Sisnando I e o primitivo mosteiro de Santo Estévão, cuja desagregação no séc. X deixou para a posteridade a igreja da Corticela, depois dedicada a Santa Maria, e cujos frades receberam terrenos extramuros, na parte de Pinário, para edificarem uma nova fundação, já com São Martinho de Tours como advocação.
Contudo, a denominação de Locus Sancti Iacobi ou, de maneira simplificada, Locus Sanctus, não irá ter demasiada fortuna. A própria bula papal é clara o suficiente: «que Compostella dicitur». E não é a primeira ocorrência. Compostela aparece já como topónimo em documentos diplomáticos astures do séc. IX, e em meados do s. XI já devia ter prevalecido definitivamente sobre o nome de Locus Sanctus dado ao local após a inventio de Paio e Teodomiro.
obtestamus itaque nos prefati testatores et contestamus omnes episcopos de loco sancto sancti Iacobi Compostellae et omnes religiosos uel prelatos comprouintiales ut nullus sit ausus qui hoc uotum nostrum seu testamentum infringere
Floriano Cumbreño, A. C. Diplomática española del periodo astur, p. 236-238. 846 ca.
A aparição tão cedo no tempo deita por terra a teoria da formação composita tella associada esta à reconstrução após o ataque de al-Mansur que destruiu quase por completo o locus. Por que? Porque aquilo aconteceu em 997, mais de um século depois da primeira ocorrência documentada. É certo, porém, que a fórmula composita tella bem pode fazer referência a outro momento, mas convém notá-lo.
Ante Altaria e Corticella
Também são interessantes os topónimos Antealtares e Corticela. Em relação a Antealtares, a etimologia parece clara o suficiente e relaciona-se com o construto ante altaria. A maioria de textos disponíveis explicam essa referência a múltiplos altares apontando para as três capelas — de São Pedro, do Salvador e de São João Evangelista — mais orientais da terceira e definitiva basílica. Contudo, a fundação do convento (830 ca.), que primeiro foi masculino e teve advocação a São Pedro, é 245 anos anterior ao início daquelas obras de ampliação da catedral (1075). Ainda, dispomos de diversa documentação bem anterior ao séc. XI com ocorrências de Antealtares.
relique recondite sunt in monasterio Antealtares, ubi me trado et textum facio, quod est constructum iusta basilicam beatissimi apostoli Iacobi in
Sáez Sánchez et alii. La Coruña. Fondo Antiguo (788-1065), p. 185-189. CODOLGA
A escassa documentação relacionada com os primeiros anos de Antealtares não permite afinar mais. Fique, por enquanto, apenas a anotação de que o nome não pode estar relacionado com as três capelas da terceira basílica, polo já explicado.
Já o nome Corticela aparece sempre vinculado sempre à igreja com advocação a Santa Maria — et eciam confirmamus uobis ipsam ecclesiam Sancte Marie de Cortecella —, remete provavelmente para uma forma do latim corte com um sufixo diminutivo -cella. As dificuldades são, neste caso, relativas a esse étimo corte, com variante de pouco percorrido curte — presente em Cúrtis — e ao seu significado. Os dicionários de latim medieval confirmam a polissemia. Para Ayala Martínez (1994: 176), corte «suele hacer referencia a un espacio acotado, muchas veces ‘urbano’ —aunque desde luego no siempre—, con explícitas alusiones a hábitats familiares […] o productivas de huerto, de no mucho alcance territorial». A dúvida está em saber se o étimo é aqui aplicável por estar a igreja também ao pé de um cercado pequeno para o cultivo dentro do Locus; se for aplicável por estar dentro da paliçada que, por sua vez, está dentro da muralha de Sisnando II.
Os bairros de fora
Fora da paliçada que encerrava o sancta sanctorum compostelano, outros bairros foram ganhando vida e forma. A chegada de peregrinos que ficavam e a atração laboral das consecutivas obras para alargar e engrandecer a sé — e as suas muralhas protetoras — acabaram por transformar a concepção espacial fechada do locus sanctus com novos espaços anexos. Surgiram assim bairros extramuros ao pé dos caminhos que atravessavam a paliçada polas suas seis portas. Rapidamente, a partir da construção da muralha de Sisnando II, todos esses espaços ficaram intramuros e unificados, se não urbanisticamente ainda, sim ao fazerem parte já de uma mesma cidade com uns limites claramente definidos.
Pinário e Lóvio
Dentre os bairros suburbiais, dous parecem ser anteriores ao primeiro processo de expansão urbana que dá lugar à villa burguensis do s. XI: Pinário, situado a norte da basílica, e Lóvio, situado a leste. O primeiro corresponde com os terrenos que hoje ocupa o gigantesco mosteiro beneditino de São Martinho Pinário, fundado, por sinal, pelos frades bentos que Sisnando I tinha trazido para a Corticela. Contudo, o nome de Pinário deve ser explicado, já que nada tem a ver com o pinheiro, como dizem muitos guias turísticos e como parece mostrar alguma ornamentação barroca e neoclássica vinculada ao mosteiro. Pinário é, antes de mais, lugar elevado, com a mesma raíz de pena, não há dúvida ao respeito. Outra cousa é a respeito da conservação da forma fossilizada Pinário, que não evolui para Pinheiro como tantos outros lugares temos polo país adiante e que —também— tão pouco têm a ver com fitónimos.
Pela sua vez, Lóvio é hoje um topónimo perdido, apenas continuado na forma Solóvio recolhida na igreja de São Fiz. Mas, por outra parte, a formula sub lovio também nos permite imaginar onde é que estaria, necessariamente mais alto, o Lóvio originário: algures nas proximidades da atual ruela de Altamira, numa zona que segundo López Alsina estaria já povoada antes da inventio. Sobre a origem do nome, diz López Ferreiro que provenha do germânico *loub-, com o significado de espessura ou frondosidade. Para Costa (2008), a forma procede de um *laubjo também germânico, com o significado de alpendre, emparrado (habitualmente de vide), que em todo caso conserva o seu valor semântico ainda hoje em áreas vitivinícolas do país e de Portugal (Loivo). De qualquer forma, a igreja que lá se encontra aparece na documentação como sancti Felicis de Louio em documento do ano 1077, mas também associada à forma Solóvio.
O bairro do Campo
Um dos novos bairros burguensorum que correspondem com este momento de expansão urbana surge a nordeste do complexo sacro, ocupando aproximadamente o que hoje fica por volta das praças de Pão e das Ânimas, por onde entravam os primeiros peregrinos da rota francígena. A atual Praça de Cervantes, que tantas vezes mudou de nome e cuja denominação atual responde apenas a uma estátua de Cervantes que há na fonte central, era então conhecida como o Campo, e nela celebrava-se mercado, isto é, forum — o que acabará por estabelecer um novo topónimo à volta do séc. XII.
O nome de Campo, contudo, conserva-se ainda na igreja que fecha atualmente um dos lados da praça: S. Bento do Campo. Deste bairro do Campo ou do foro descia-se em direção oeste para ir ao locus ou em direção sul para chegar ao bairro do Lóvio. O desnível, de facto, joga aqui um papel importante, para contradizer o topónimo, no sentido semântico de «campo», que é sempre planície destinada a cultivo. A praça do Campo — hoje do Pão ou de Cervantes — não era lugar de cultivo, ou não o era mais do que o resto de vici que surgiram à volta do locus sanctus, de resto completamente cercado de agros.
Uma possível explicação seria considerar «campo» não como lugar de cultivo, mas como lembrança do «acampamento» militar romano que se infere dos jazigos arqueológicos, da via romana entre Braga e Astorga per loca maritima que teve bem perto da cidade o seu giro fundamental, e da particular traça, relativamente ortogonal, que formou aquela primeira villa Sancti Iacobi — visível se considerarmos os eixos Vilar-Lóvio, Lóvio-Preconitorium-Campo, Campo-Pinário, Pinário-sepulcro-Vilar e a prolongação dos mesmos (vid. Fig. 1). Ora, os campos militares opõem-se aos castri e castelli por serem locais empregados apenas temporalmente. Será então uma resignificação?
O Preconitorium
O caminho entre o Campo e Lóvio, que discorria pela parte de fora da paliçada de Sisnando I, acabou também por ser ocupado, dando origem ao Vicus Preconitorium, que hoje chegou a nós com o nome de Preguntoiro, e que nada tem a ver com as perguntas, mas com o latim preconare, configurando assim um lugar dos pregões, não eclesiásticos, mas civis e talvez económicos — relacionados com os preços das mercadorias. Ainda, investigações recentes concluíram que nesta zona se localizaram armazéns e silos de um tamanho que impede concluir que fossem de uso doméstico e particular (Teira Brión et alii, 2010), e que fazem todo o sentido se considerada a proximidade, justamente, ao local do mercado.
O Vilar
Continuando para sul, desde Lóvio, aparece o bairro do Vilar, cujo topónimo Vilar não deveria representar qualquer problema. Mesmo assim, durante o séc. XII, há várias ocorrências de um sinónimo relativamente esquisito: o Vallis Milvorum, depois resgatado em várias épocas como referência erudita e, mais recentemente, como esquisitez romântica e turística.
in compostellana urbe in rua que vocatur Vilar sive vallis milvorum loco certo
Tombo de Tojos Outos, fólios 75r-75v, ano 1175 (CODOLGA)
in civitati Sancti Iacobi, in rua que dicitur Vallis Milvorum et Vilar, loco certo
Tombo C da Catedral de Santiago, fólio 123v, ano 1179. (CODOLGA)
O Vallis Milvorum é frequentemente intepretado como vale dos minhatos — ou de qualquer outra ave rapaz. A justificação é também comum a muitos autores, que bebem uns doutros: sendo local com fazendas e com gado, galinhas, gansos, etc., era também um espaço onde as aves rapazes costumavam aparecer para a caça. A explicação, em qualquer caso, não parece muito filológica. Por outra parte, o étimo vallis, que é o atual vale, também não concorda plenamente com a orografia, porque supõe uma depressão relativamente aos terrenos circundantes que apenas se cumpre a leste do próprio Vilar, onde a cota sobe até à zona que oucupava o bairro de Lóvio. A oeste, em troca, desde o Vilar apenas há mais descida, por onde hoje está a zona de São Clemente. O Vilar, em resumo, não se encontrava num vale — ou não era a parte mais profunda e significativa dele —, mas numa encosta.
O vicus Francorum
Por último, o bairro mais afastado da catedral, o Vicus Francorum, isto é, a aldeia dos francos, que configura a entrada sul da cidade pelo caminho de Íria Flávia e Padrão. A respeito do assentamento de imigrantes francos no noroeste da península, podem consultar-se diferentes referências interessantes (por exemplo, a de Ruiz de la Peña), mas a explicação para o nome é clara se considerarmos: a) o fenómeno crescente da peregrinação, com o seu contínuo pingar de pessoas vindas de terras longínquas; e b) o facto de qualquer peregrino, de qualquer procedência, receber a denominação de franco.
Bibliografia
- Ayala Martínez, C. D. (1994). Relaciones de propiedad y estructura económica del reino de León: los marcos de producción agraria y el trabajo campesino (850-1230). El Reino de León en la Alta Edad Media, 1, 135-410.
NOTA SOBRE A IMAGEM INICIAL: Ilustração reconstrutiva de José Luis Serrano Silva
3 respostas
Moi interesante artigo, noraboa. Nada máis dicir que se bota de menos algunha referencia ao castro que habería na zona de San Fiz de Solovio, segundo Díaz Díaz, sería chamado Castro do Ouro ou quizás antes Callobre. A veciña rúa do Castro faría referencia ao asentamento.
Obrigado pola informação, Celso. Seria possível que deixasses a fonte de Diaz Diaz por aqui, para consultar?
que so respeitou o sepulcro do apostolo. Apos o regresso dos habitantes comecou a reconstrucao e em meados do seculo XI o bispo Cresconio dotou a cidade de uma cintura de fossos e uma nova muralha, cnstruida sobre o antigo anel de palicadas, para proteger os novos bairros que tinham surgido em redor do povoado primitivo. Alem disso, reivindicou para a cidade o estatuto de sede apostolica. Em 1075, o bispo Diego Paez deu inicio a construcao da catedral romanica. O crescimento da peregrinacao faz de Compostela um local de referencia religiosa na Europa, o que aumenta a importancia da cidade, que se reflete tambem no aumento do seu peso politico. Em 1120, o arcebispo Diego Gelmires obtem do papa Calisto II a transferencia do da se metropolitana de Merida, entao em maos muculmanas, para a igreja compostelana, o uso do palio e o Jubileu Compostelano (ou Anos Santos).