O calvário galego de Claude de Bronseval

Os caminhos e as peregrinações no s. XVI pouco deviam ter a ver com as de hoje, que ateigam Compostela de turistas com todas as letras que simulam diferenciar-se do resto pola particularidade de chegarem de a pé, de bicicleta ou a cavalo. Notícias e narrações dessas viagens à Galiza abundam desde a Idade Meia, sempre com uma constante: serem as visões de estrangeiros a contarem o visto da sua própria óptica, que é a óptica do visitante.

A peregrinatio hispanica de Bronseval

Um texto particularmente interessante é a Peregrinatio Hispanica de Claude de Bronseval, secretário do abade do mosteiro cisterciense de Claraval, Dom Edme de Saulieu. Bronseval acompanha o próprio abade numa visita à península ibérica em 1532 que não é exatamente uma peregrinatio pro Christo, mas sobretudo para pulsar os ânimos nos vários mosteiros da congregação pola iminente fusão destes na congregação de Castela e a eventual separação da matriz francesa.

Bronseval deixa por escrito os episódios da peregrinação, que entra na Galiza por Ponferrada e continua para Portugal. Deixa também alguns dados geográficos, topónimos e avondosas mostras do «calvário galego» que sofreu a comitiva. No total, além do abade e do seu secretário, viajavam outro frade cisterciense, Jean de Vicelieu, o crego segrar Jean Gallot, um palafreneiro, um page, um cozinheiro e um ajudante de câmara. Com efeito, as penalidades foram tantas que até dá para ler como uma peça de humor.

Mapa do percurso de Claude de Bronseval
Percurso do abade Edme de Saulieu, frei Claude de Bronseval e o resto da comitiva polo reino da Galiza na sua viagem em 1532, com os topónimos apontados.

De Ponferrada a Valcarce

A primeira referência de Bronseval à Galiza é Ponferrada «onde termina o reino de Castela e começa o da Galiza». Diz Bronseval que entram «na vila de Ponferrada passando por um primeiro rio, chamado Rio de Boez, através de uma ponte pêssima e perigosíssima». De Ponferrada, onde param, cruzam o rio Sil, «que não flui, mas se precipita». Continuam ao dia seguinte polo caminho de Santiago polo Berzo até Campo Naraia, onde se desviam para Naraiola e continuam face ao mosteiro de Carrazedo. Anota aí Bronseval — e será a última vez que o faça — que foram bem tratados e descansaram a noite toda.

No dia seguinte, a comitiva faz o trajeto entre Carrazedo e a Veiga de Valcarce, o uallis Carceris latino, citando apenas como ponto intermeio Vila Franca do Berzo. Aí esquece Bronseval relacioná-la com a sua origem francesa, atestada na toponímia medieval primeiro como Vico Francorum e depois como Villa Francorum — com um genitivo que, antes da sua substituição por um adjetivo, não deixa muita margem à dúvida. Para Bronseval, a Vila Francha que atravessam na sua viagem é apenas uma vila franca, sem portagens.

Era Vilafranca realmente uma vila de francos? Era, se atendermos ao facto de «francos» se empregar como gentílico geral para todo quanto peregrino vier por aquela rota. E também se repararmos que na época chegou a vila a ter até cinco hospitais de peregrinos. Mesmo assim, para Bronseval, tratava-se de um vilarejo pequeno e oblongo situado num pequeno vale rodeado de montes altíssimos e horríveis entre os quais passa o caminho tortuoso, inícuo e «cornuto» até à misérrima Veiga de Valcarce, onde se viram obrigados a dormir à intempérie e foram tratados a paus. A narração é explícita o suficiente, e não necessita tradução:

Hanc preteverimus et ponte lapideo transacto torrente inter horridos montes inclusi ad dextram manum rupes, ad sinistram torrentem habentes, via scopulosissima, cornuta, tortuosa, iniqua, processimus duabus magnis leucis… finaliter ad miserriumum villagium pervenimus vocatum La Vega. Ubi oportuit manere ella nocte, ubi fuimus male et misserabiliter cubati ut super terram et tractati a la forche, et equi nostri miserabilius.

De Valcarce a Sárria

Após a experiência da Veiga, fazem a distância FabaZevreiro e entram no que administrativamente é hoje a Galiza. O Zevreiro aparece no texto de Bronseval como monte Februarius, Le mont de la Fane. A confusão entre Zevreiro e Februariu é geral em toda a época. Aliás, já foi em parte explicada quando falamos dos topónimos com raíz céltica cerv-. Continuaram avançando até Vidoedo, onde de novo não acharam nada para comer, nem para si nem para os cavalos. Mais uma vez, devem continuar de a pé descendo até Triacastela (burgum dictum Trecastel), onde a situação não corre melhor. Apenas toparam para comer o que levavam consigo de Carrazedo.

pervenimus ad miserrimum villagium vocatum Beduledo, in quo volebamus prandere quia iam sex leucas maximas faceramus. Sed pro bestiis nostris nihil omnino manducabile inveniri potuit. Itaque ex eo loco cepimus descendere celsis cacuminibus et pedites ambulavimus trahentes equos nostros valde lassatos per iter et descensus lapidosum. Et tandem devenimus ad burgum dictum Trecastel in quo summe laboraviums por equis locandis… tandem aliud est inventum ubi cibum sumpserunt… nos vero comediums ea quae nobiscum detuleramus

O seguinte trajeto, depois do almoço, continua de Triacastela por um vale aberto e agradável — e isso foi o melhor que Bronseval escreveu — até Sárria. Sárria era na altura uma vila fortificada com castelo, do que hoje fica apenas a torre. E lá de novo comeram bem, mas dormiram mal.

Prandio sumpto… et inter castaneas arbores…devenimus in vallem optimum, cuius in latere altero…situm est oppidulum nuncupatum Sarria in quo equi nostri fuerunt bene tractati, nos vero satis bene, sed male cubati.

De Sárria a Compostela

No trajeto do dia seguinte, entre Sárria e Gontim, cita Bronseval apenas um topónimo, o de Porto Marim. Lá param numa pousada com tanto fumo como o inferno e regentada por uma mulher que o frade compara com Jezabel, princesa fenícia casada com o rei Acabe de Israel que passou ao Primeiro Livro de Reis do Antigo Testamento como uma mulher dominadora, capaz de se impôr ao próprio rei. Depois de Porto Marim chegaram os frades a Gontim. Mais uma vila fortificada onde acabam a dormir no chão depois de muito esforço para encontrarem hospedagem.

Após deixarem Gontim, dom Edme e frei Claude continuaram até Ligonde. Lá abandonam o caminho para se dirigirem ao mosteiro de Sobrado, que era também cisterciense por meio da doação do conde de Trava e que na altura se parecia pouco com a imagem barroca atual. Ao mosteiro chegam após atravessarem «um rio mui perigoso», que não é outro que o Tambre, que formava naquela zona um pequeno pântano.

Na jornada seguinte, os frades chegam por fim a Compostela. Apenas três topónimos são citados no caminho: Ferreiros, Lavacolha e o Monte do Gozo. A descrição de Ferreiros é a de uma aldeia situada numa zona mísera, íngreme, em absoluto fértil. A Lavacolha aparece citada apenas de passada. E, sobre o monte do Gozo, diz haver uma grande cruz em que os peregrinos amoreiam pedras. À chegada à cidade, observa Bronseval que há mais franceses que galegos e que a língua francesa é língua «familiarissima». E, também, para não variar, que a sua hospedagem, a pousada do Anjo, resulta desconfortável:

in hospitio sordido, misero, fumoso, fetido, tenebroso, maledicto, in quo non quievimus, sed in labore et erumma magna fuimus propter malam loci dispositionem

De Compostela a Ponte Vedra

Bronseval e o abade permanecem um dia completo em Compostela. Contudo, no relato destacam apenas a capela da França da catedral — onde o abade oficia uma missa. A capela da França era o nome que recebia então o que hoje chamamos de capela do Salvador, isto é, a capela central do deambulatório, e que é uma das partes mais antigas do edifício, ca. 1075. O nome de capela de França — ou do rei da França — procede de uma fundação de missas mandadas celebrar em 1372 polo então rei francês Carlos V de Valois. Por sinal, o retábulo que é possível contemplar nessa capela hoje, feito por Juan de Álava em pedra policromada e com umha interessante imagem gótica de Cristo salvador, foi realizado no mesmo ano 1532 da peregrinação dos frades francos que estamos a acompanhar. Na narração, aparece também uma nota sobre a disputa da catedral de Toulouse com a compostelã a respeito das relíquias do apóstolo.

Depois de fazer noite de novo na pousada do Anjo, abandonam a cidade pola porta Falguera, isto é, Faxeira, em direção a Padrom. Portanto, fazendo à inversa o que hoje conhecemos como caminho português. As quatro léguas entre Compostela e Padrom aparecem caraterizadas como «via distorta». Passam pola capela do Santiaguinho, onde diz o frade que a estátua do apóstolo se esconde dos seus perseguidores. Em Padrom, em todo caso, continuam os destratos, o que os faz continuar «por caminho pedregoso» até à seguinte vila. Mas tampouco em Caldas de Reis topam pousada. Só no último momento são ajudados por um crego que os encontra a deambular e lhes oferece a sua casa «onde fomos tratados de maneira miserável e pobre nós e os nossos cavalos».

De Caldas, a comitiva abandona o caminho para se achegar ao mosteiro da Armenteira. Fazem-no através de «estériles montes» salferidos de pequenos vales com grandes bosques. Ao descrever o mosteiro, Bronseval laia-se da majestuosidade perdida e qualifica-o como quase totalmente arruinado. Os seus frades, a dizer do francês, mal sabem já pronunciar o latim, «enfermidade muito estendida entre os hispanos». Na Armenteira não permanecem mais do que o tempo imprescindível e no dia seguinte atravessam as suas fragas até cruzar o rio Lérez «por uma ponte longuíssima» para chegar à vila de Ponte Vedra. Bronseval escreve aí Pont de Vedre, com preposição ainda presente. Em Ponte Vedra hospedam-se depois de grandes dificuldades: «só Deus sabe como é que fomos tratados nessa vila».

De Ponte Vedra a Tui

A partir de Ponte Vedra o caminho continua face à «Pont Saint Paye, id est Pauli» — mesmo que Ponte Sampaio não seja Pauli em absoluto —, que dá acesso a Redondela. Mais uma vez têm problemas para encontrar pousada. Até que, por fim, são acolhidos por um peregrino que retornava de Roma via França «em lembrança das boas pousadas do nosso país».

Por fim, o dia seguinte foi o último dos dous frades na Galiza. Abandonando Redondela, passam polo Porrinho, onde param para comer «muito pobremente». Daí continuam para Tui. «Os dali riam de nós como se fôssemos bárbaros ou sarracenos», e não conseguiram encontrar pousada. Foi o próprio bispo da cidade que acolheu o abade de Claraval na sua casa. Mas Bronseval acabou numa pousada a dormir «ao modo galego, entre sujidade e maus odores».

devenimus ad urbem Tuenesem, idiomate galego Touy, quae finem facit regno Galeciae…Hic intervenit difficultas grandis admodum reperiendi hospitium quase essemus barbari at Agareni, et nos irrideban incolae…ubi ea nocte iacuimus more galego in sordibus et fetoribus.

Literatura de viagens

As narrações literárias sobre viagens são uma constante na história da humanidade, em particular na sua vertente de livro para viageiros do tipo do Códice Calixtino, mas também como crónica. O Itinerarium ad Loca Sancta de Egéria, escrito nos anos finais do século IV, é um exemplo perfeito.

Contudo, a verdadeira explosão deste tipo de literatura acontece dez séculos mais tarde, no XIV. De 1300 é o Livro das maravilhas de Rustichello de Pisa, que narra as viagens de Marco Polo. Hoje é sabido que Marco Polo não existiu realmente. Na realidade, tudo foi uma invenção de Rustichello com base nas narrações de mercaderes genoveses e venezianos. Mas o pormenor não importa neste caso. Existiam narrações reais de base e, por si próprio, o livro teve um sucesso e uma distribuição infrequente — se considerado que Gutemberg ainda não tinha inventado a sua versão da imprenta de tipos móveis.

O desenvolvimento deste tipo de obras foi enorme nos séculos seguintes. Tanto que, em 1896, o hispanista Raymond Foulché Delbosc contabilizava na sua Bibliographie des voyages en Espagne et en Portugal mais de oitocentos títulos e mil e setecentas edições, em dezesseis línguas, apenas referindo-se à península ibérica.

Uma imagem da rede viária e de pousadas

Pode que este texto não tivesse como destino ser publicado, mas apenas servir de crónica da viagem. Provavelmente, aos efeitos da gestão interna da ordem do Císter. Aliás, uma das tarefas concretas de Bronseval era redigir os chamados «documentos de visita», que recolhiam os defeitos observados polos visitantes em cada um dos mosteiros, e dos quais uma cópia era enviada à casa mãe francesa aos efeitos de fiscalização.

Aliás, o texto só foi publicado em 1970, quando o pergaminho foi ré-descoberto polo abade de Port-du-Salut, Maur Cocheril. Mas o facto de não estar destinado à sua publicação, não impede que a narração seja filha da sua época. Nem que tenha um interesse particular como descrição da rede viária e das pousadas e hospedagens da época na Galiza. Neste caso, da entrada polo caminho francês em Ponferrada até à saída polo caminho português em direção a Caminha.

Finalmente, a dizer de Bronseval, com caraterística profussão de adjetivos pejorativos, os caminhos e as pousadas galegas deviam ser particularmente penosas e ruins. Logicamente, por oposição às da França, em cuja comemoração um romeiro os acolhe em Redondela. Será que era assim? Uma comparativa transporia os limites desta nota. Fica para mais adiante, pois.

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