Vai outra de toponímia deturpada. Quem ler saberá desculpar, por dous motivos: porque a toponímia deturpada se presta às maiores burrices no seu estudo etimológico; e porque a toponímia deturpada é, simples e tristemente, maioritária. O caso de hoje constitui, ademais, umha das mais flagrantes barbaridades daquele processo de desnaturalizaçom linguística que continua, mas que tivo a sua época de glória há já uns anos. Refiro-me a Ninho d’Águia, que alguém traduziu, pola brava, como “Niño de la Guía” (Criança ou Neno do Guia), apoiando-se em sei lá que cousas da Virgem Maria.
Umha explicaçom cristológica
Ora, Ninho d’Águia é também um exemplo do modo como os linguístas procuram às vezes os três pés do gato ou, por outras palavras, trocam a linguística e o sentidinho pola tripologia felina (Umberto Eco dixit). Por isso houvo quem insistisse em que umha interpretaçom como Neno da Guia faria sentido porque nas Astúrias há tradiçom de representar a Virgem do Guia a levar umha criança que aponta para a frente com o dedo, e obviando, de passada, o facto de Ninho d’Águia, se escreva como se escrever, continuar a ser proparoxítona.
Também houvo quem, concedendo que Ninho significa exatamente isso, «ninho», estudou a possibilidade de que Águia significasse, já nom “guia”, mas “água”, jogando com a ideia da equivalência prática de “u” e “i”, nomeadamente ao funcionarem como semivogais. Mas o resultado, “ninho da água” nom deixava de resultar um bocado estranho. De modo que, tendo em conta esse águia = água, e aventurando, até houvo também quem teimasse em resolver dizendo que a forma “ninho” seria, mais propriamente “minho”, por dissimilaçom da pré-formante “m”, com valor (céltico) de fonte ou manancial. Todo para terminar tendo, entom, no fim das contas, umha “fonte de água”: explicaçom esquisita, sem dúvida, mas relativamente verossímil se tomado em conta que, na Galiza, há nascentes por toda a parte. Será sempre muito mais factível que um «ninho de água».
A explicaçom etimológica
Em qualquer caso, em descargo desses “quem” que houvo, também houvo quem tivesse um bocado a mais de amplitude de campo e notasse que o significado literal de «ninho de águia» se repete por diversos territórios, nom só da Galiza, como do norte da península ibérica, em forma de Nidáguila, Pena da Aiga, Penáguila, Puig d’Àguiles e até Arranomendia («monte das águias», em euskera). Em Portugal mesmo há Ninhos d’Águias suficientes como para reconsiderar o da simples fonte de água e, já postos, advogar um bocadinho mais polo conceito de sentidinho que tratamos no início da nota.
Mas, por se ainda houver dúvidas, ainda teríamos as fontes medievais (CODOLGA) que dam tanto “Nio de Aquila” (1157) como “Nido de Aquile” (1171). Confronte-se, por certo, o par nio/nido com quatorze anos de diferença: nom será esse (e isto é só umha hipótese) o momento em que se está a produzir justamente o processo de perda do -n- intervocálico latino que depois, andado o tempo, terminará reaparecendo em forma de palatizaçom do hiato formado polas duas vogais adjacentes, em forma de -nh- (passarinu > passario > passarinho?
Enfim: o valor de ninho para Ninho continua com força, inclusive perante o último embate dos desconfiados que, com a teoria da toponímia na mao, argumentam que para se formarem os topónimos é necessário um elemento estável que crie e mantenha o próprio topónimo no tempo (v.g. um acidente geográfico, um proprietário…), e que um simples ninho nom dá para ser assim tam estável, por mais d’águia que seja. Mas, entom — pode dizer-se — será que onde umha águia fai o ninho, nunca mais águias farám o seu?