Sá, Sás, Zas (e Sortes e Salgueiros), e a hospitalidade galaico-romana

Abundam em todo o NW peninsular referências toponímicas com variaçons de (Sás, Saas, Zas e compostos). Trata-se, sem qualquer dúvida, dos medievais sala, que em galego-português perdêrom o -l- intervocálico entre os s. X e XII, e que nalguns casos resolvêrom a crase -aa- e noutros ficou fossilizada. A forma plena, Sala (e Salas), parece umha castelhanizaçom, se falarmos de topónimos galegos, ou entom proceder doutro étimo, que deveria ver-se em cada caso. Já entre as palavras de uso comum, sala deveu ser reintroduzida através do francês, com preservaçom de -l-, que dá o atual «sala», que já se documenta bem no início do s. XV com o significado que lhe damos hoje.

os omes de pe do dito señor Obispo que continuadamente andan e comen de cada dia en sala con o dito señor obispo

Ourense, 1417 (TMILG)

Do que nom cabe dúvida é da evoluçom Sala > Saa > Sá que testemunha a documentaçom medieval na troca do primeiro para o segundo milénio.

per petram de Sala per mamulam que stat inter Porcimilios et Villar de Custodia

Doaçom ao mosteiro de Cines, ano 911

ecclesiam de Guisamo cum sua uoce et cum nostris hereditatibus et solaribus et creationem, uillam de Saa cum sua uoce

La Coruña, fondo antiguo (788-1065), ano 1063

Os topónimos com esse componente som o que chamamos de oicotopónimos, isto é: topónimos relacionados com a habitaçom e as atividades económicas — neste caso agrícolas. E som, ademais, de origem germánica. Está aí, no fundo, o proto-germánico *saliz- com o significado de ‘hall, house’ (Lubotsky), que deu em norueguês antigo salr, inglês antigo salor, saxom antigo seli ‘hall, building’ ou antigo alto alemám sal, alemám moderno Saal. O mesmo sala que parece achar-se por trás dos antropónimos Salamirus, Salamarus, e mesmo Salla que aparecen na documentaçom medieval como restos suevos.

A procedência IE de *saliz– parece ser *sel- com o significado de ‘morada, habitaçom’. Eis o trecho do Pokorny para o PIE sel-1:

Ahd. sal m. ‘Wohnung, Saal, Halle’, langob. sala ‘Hof, Haus, Gebäude’, as. seli m. ‘Wohnung, Saal, Tempel’, ags. sæl n., salor n., ‘Halle, Palast’, sele m. ‘Haus, Wohnung, Saal’, aisl. salr m. ‘Saal, Zimmer, Haus’, Pl. ‘Wohnung, Hof’, sel (*salja-) ‘Sennhütte’; got. saljan ‘einkehren, bleiben’, saliþwōs Pl. ‘Einkehr, Herberge’, ahd. salida, as. selitha, ags. seld ‘Wohnung’; abg. selo ‘fundus, Dorf’, selitva ‘Wohnung’ (bildungsähnlich dem got. saliþwōs); lit. salà f. ‘Dorf’.

Pokorny, 1671. sel-1

Interessa, de toda a produçom de sel-1 nas línguas germánicas, a variante *salja– ‘chegar, ficar’ e saliþwōs ‘retiro, albergue’, que permite ver claramente o campo semântico da hospitalidade. E, com efeito, parece que todo esteja relacionado com «receber visitantes». Veremo-lo em breve. Interessa também a forma langobarda sala ‘quintal, casa, edifício’, por vários motivos: 1) por ser a mais próxima da galega, 2) pola significativa quantidade de ocorrências toponímicas de Sala na Itália setentrional e 3) por serem os langobardos um povo diretamente ligado aos suevos (segundo Estrabom, Tácito e Ptolomeu) que viriam a se estabelecer aqui.

As salae italianas, a dizer de Bruno Migliorini na sua obra sobre a História da Língua Italiana, eram casas devotadas para a produçom agrícola, mas também para a fiscalizaçom do território, pois tinham capacidade para recolher a tertia, isto é, um terço da colheita que a aristocracia langobarda exigia aos campesinhos itálicos. Mas nom deveu ser assim apenas na Itália. A tal terça emanava da constitucionalidade romana desde Arcádio (377-395-408) e Honório (398), o que significa que se dava, de algum modo, por todo o império, com as variaçons que forem. E aqui é onde liga o conceito de «receber visitantes» ou, por outras palavras, hospedar: lat. hospes = gót. saljan.

Os imperadores Arcádio e Honório a Ósio, mestre dos ofícios: em qualquer cidade em que nós próprios estejamos, ou onde resida quem nos servir na milícia, para eliminar qualquer iniquidade tanto dos mediadores como dos hóspedes, que o dono possua sem medo e com segurança duas partes da sua própria casa, e que a terceira seja entregue ao hóspede. Dividida assim a casa, que o dono tenha a faculdade de escolher a primeira, o hóspede a segunda — a que quiger — e a terceira fique para o dono.1Impp. arcadius et honorius aa. hosio magistro officiorum. In qualibet vel nos ipsi urbe fuerimus vel ii qui nobis militant commorentur, omni tam mensorum quam etiam hospitum iniquitate summota duas dominus propriae domus, tertia hospiti deputata, eatenus intrepidus ac securus possideat portiones, ut in tres domu divisa partes primam eligendi dominus habeat facultatem, secundam hospes quam voluerit exequatur, tertia domino relinquenda

Ver Código Teodosiano, 7,8,5 (Ano 398)

Sortes

Contudo, a diferença dos foederati do passado, no final do s. IV nom se tratava de uns quantos centos de soldados e mercenários que fosse necessário acolher entre as comunidades do império. Tratava-se de povos inteiros, que obrigárom, por umha questom puramente quantitativa, a cessons adicionais de terras para que a nova populaçom as pudesse trabalhar. Nom admira, portanto, que em meio à confiscaçom forçada de terras da aristocracia galaico-romana, textos com os do bispo Idácio de Chaves (Aquae Flaviae) apresentem os suevos invariavelmente como ladrons e depredadores. A nova repartiçom de terras trouxe novas leis, nas que as fraçons entregues aos hóspedes receberam o nome de sortes (sors, sortis).

Há presença dessas sortes na toponímia galega? Pois há. Em particular na microtoponímia e em zonas tam significativas como os concelhos do Páramo, Palas de Rei, Sárria, Samos e O Zevreiro — todas nas margens da velha Via XIX — e noutras partes do leste ourensám, de relativamente forte presença romana. É o caso de vários Sorte, da Sorte Grande, a Sorte da Madrinha, e outros derivados.

Isto nom significa que todas as sortes remetam para o mundo galaico-romano, é claro. A palavra está bem viva como apelativo vulgar bem depois da extinçom do império romano ocidental, como demonstra a prosa diplomática e testamentária.

Adicio eciam et pomarem in Trupia de iermane mee Piniole cum suo fundamento et sorte in villa quem dicunt Salto

Lugo, 863 (CODOLGA)

O que é sim possível, aliás, provável, é que os conceitos de e sorte chegassem a confundir-se de algum modo, sobrepondo-se um ao outro — o que explicaria o maior número de registos toponímicos de Sás — ou no mínimo fazendo parte do mesmo campo semántico. Fórmulas como Saavedra (< Sala Vetera, ‘sá velha’), Sasdónigas (< Salas Dominicas, ‘sás do senhor’), provam a fusom germ-lat, e, portanto, a vitalidade de «sá» como palavra comum, com capacidade para flexionar. Até quando? Fica por ver, mas parece que, no mínimo, até ao início do s. XIII.

unus est uidelicet in palatio et tres sunt in saa ut teneatis eos in prestimonio omnibus diebus uite uestre

Carboeiro, 1215 (CODOLGA)

Salgueiros

Quanto a Salgueiros, existe certa tendência a relacionar este grupo de topónimos com derivados do latim salicem (salix, -is) ‘salgueiro’, remetendo-os assim para fitotopónimos. Contodo, há tempo que alertámos sobre o abuso deste recurso, sobretodo em casos em que o tal salgueiro aparecer a sós, isolado de adjetivos ou outras referências que o tornem único — e, portanto, geo-referencial —, ou de sufixos abundantivos que definam coletivos singulares.

No caso de Salgueiro, Salgueira e os seus plurais, cumpriria analisar caso por caso a possibilidade de um derivado do sala germánico, já latinizado: salicarium. Isto é, um adjetivo de salica, ‘terra dominicalis, ou do senhor, herdade, prédio pertencente à sala‘, como sinala Dolores González de la Peña. Referências de salicariu/salicaria existem várias:

q\u/omodo vadit de illa aqua de fonte Salcaria usque ad illa aqua de villa Auzani

Samos, 1080 (CODOLGA)

et ad fontem de Rege. et inde per selgarias. et super cersariam desuper Sanctum Georgium

Ourense, 1133 (CODOLGA)

O caso de Zas

Por último, o caso de «Zas», forma isolacionista (e espanhola) do corónimo Sás, concelho da Terra de Soneira, nom deveria resultar problemático. Há quem diga que a eleiçom do Z- inicial tem a ver com a pronúncia thetacista do nome do concelho. Quer dizer, pronunciar Sás como [θas].

Na realidade, Sás fica na margem ocidental da Galiza, onde o fenómeno thetacista que vai avançando por pressom do castelhano peninsular moderno ainda nom se tornou geral. De modo que só se explica essa pronúncia por umha ultracorreçom. Ou o que é o mesmo, por entender que a pronúncia [θas] corresponde ao padrom culto (máis próximo do castelhano).

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