Topónimos germânicos (IV): terminações em -ulfe, -ufe e -oufe

⮑ Serra dos Ancares

Continuamos com a toponímia germânica na Galiza. Como se viu até a altura, a maioria das ocorrências do fenómeno dão-se em como expressão de pertença ou propriedade. Isto é, que os topónimos são, na realidade, antropotopónimos e, portanto, procedem de antropónimos, neste caso germânicos – principalmente suevos – que chegam a nós através do seu genitivo latinizado. Viram-se os casos dos antropotopónimos com terminação em -rei, em -riz e em -mil, e agora é o momento de ver outro dos diversos casos genitivos vindos para a toponímia: a terminação -ulfe, que também tem ocorrência mediante a vogalização do -l- da tónica como -u-, dando -ou- (-oufe) ou -uu->-u- (-ufe).

Sabemos, pelos modelos já explicados, que as terminações estudadas se correspondem amiúde com deuterotemas germânicos que, portanto, incorporam um significado, ainda quando esse significado possa ter desaparecido na atualidade. No caso de -ulfe, o deuterotema PGmc é *wulfaz, que significa “lobo” (inglês wolf, gótico wulfs, alemão wolf, antigo nórdico ulfr.) e que procede, por sua vez, do PIE *wlqwos, que também, com a variante *lukwos, está no lupus latino. E, assim, wulf, latinizado ulfus, gera genitivo ulfi, que abre o -i final em -e, rasgo típico do romance ocidental. E é sob essa forma genitiva, [villa] Athaulfi, por exemplo, que surgem os Adaúlfe, Adulfe, Adufe, Aulfe e Adoufe que aparecem na Galiza e em Portugal através de diversos processos evolutivos.

Toponímia com presença -ulfe, -oufe, -ufe. Fonte: elaboração própria

Equivalências diretas

Se fizermos uma procura na Galiza e em Portugal e compararmos os resultados com o Compêndio de temas antroponímicos germânicos na Gallaecia aparecerão as concordâncias que justificam o já referido: Adaúlfe, Adoufe, Adufe, Adulfe e Aúlfe (de Athaulfus); Arnufe (de Arnulfus), Brandufe (de Brandiulfus); Berulfe, Borulfe e Brufe (de Berulfus); Casandulfe (de casa + genit. de Andulfus), Cardoufe (de Gardulfus, com típica confussão k/g); Cendulfe (de Kendulfus); Frejulfe e Froufe (de Fregulfus); Gondufe, Gondufes, Gondulfe e Gondulfes (de Geodulfus); Grejufe e Grejulfe (de Grisulfus); Guilhufe e Guilhulfe (de Viliufus), Liúlfe (talvez de Leodulfus); Manhufe (de Mannulfus); Meitufe (de Meitulfus); Nandufe e Nandulfe (de Nandulfus); Randufe, RandulfeRendufe (de Randulfus); Raúlfe (de Radulfus); Sesulfe (de Sisulfus) e Trastufe e Trasulfe (de Trastulfus).

Deduções

Mais problemáticos são outros antropotopónimos para os quais não há ocorrência de antropónimo documentada, embora a sua clara morfologia germânica. Nestes casos, poderá proceder-se por comparação com outros antropónimos. Pois, Arufe e Arulfe poderiam provir de um Arwulfus (PGmc *arwaz) que embora não está documentado, sim apresentaria a mesma raíz que Arualdus ou Arumundus, que sim estão. Do mesmo modo, Bistulfe poderia tirar-se de Vistulfus, com o protema *vist– do PGmc *westan (oeste), e que tem ocorrências em Vistemundus, Vistesinda ou Vistivara; do qual resulta que, mais propriamente, deveria ser grafado Vistulfe. Caúlfe procederia de um provável Gaudulfe, com raíz *gaut (possivelmente, deus), que aparece em Gauderigus, Gaudesindo ou Gaudinas. Guzulfe poderia corresponder-se com a raiz *gunthz, que significa luta, e que deu antropónimos como Gundulfo, que também apresenta o deuterotema -wulf. Na maior parte dos casos, a raíz *gunthz deu temas *gund/gunt, mas também há documentadas variantes em *gonz, como Gonza ou Gonso, que cabe considerar. Por sua vez, Marufe e Merufe poderiam relacionar-se com a raíz mar-/mer- de *mērjaz, que deu Margilli ou Mervigius e que habitualmente aparece sob a forma *mir que já foi estudada na nota das terminações em -mil. Também é possível rastejar por este procedimento o nome de lugar Noufe, que proviria de um *Neulfus muito próximo ao documentando Neufila, do PGmc *neujaz, ‘novo’. E o mesmo com Recegulfe, cujo primeiro tema, rece-, procede sem dúvida de *rīkjaz, com o significado de ‘forte, nobre’, e aparece nos documentados Recaredus, Recesuindus ou Rezevera. Ora, a confluência de [k] e [g] em rik + wulf, e a confusão k/g, podem fazer com que essa seja também a origem de Regoufe, Regufe e Regulfe. Outra hipótese é que sejam cognatos de Rejulfe, que aponta para um *Rageulfus, deduzível do documentado Ragemiru, que dá, por sua vez, Rejamil e Regomil na toponímia atual. Sandulfe apresenta protema *sanþaz ‘verdade, justiça’, presente em Sandinus, Sando ou Santimirus. Quanto a Segufe e Soufe parecem referir a mesma origem: *Sedegulfu, não documentado, mas com protema *sedīgaz ‘de boa raça, bem nascido’. Finalmente, também é possível aventurar com um mínimo de segurança a procedência de Tiúlfe e Tulfe através de um possível *Tudulfus, provável forma evoluída do documentado Teodulfus. Com este antropónimo poderia estar também relacionado Tadoufe, mas haveria que explicar a conservação do -d- intervocálico. A outra hipótese é que tenha a ver com *Tataulfe.

E um caso à margem merece a forma Ulfe, que a simples vista parece provir diretamente de *Ulfus, não documentado. Interessa salientar que *ulfus não aparece apenas como deuterotema, mas também como protema nos casos de Gulfarius e Gulfemirus, o que é suficiente prova e, aliás, explica também a ocorrência do topónimo Gulfe e de Gulfar. Nalgumas ocasiões, contudo, Ulfe aparece precedido de artigo feminino “a”. Nesses casos, poderia pensar-se que, com efeito, o “a” é um artigo, mas se considerarmos que o PGmc é *wulfaz, com a desinência -az masculina, não faria muito sentido ter um artigo feminino a marcar o antropotopónimo. Outra opção é que estejamos perante um falso artigo gerado por segmentação de *Aúlfe. Sobre este tipo de segmentações já falamos noutra ocasião, e neste caso serve perfeitamente para ligar “A Ulfe” com Aúlfe e, por essa via, com os já explicados Adaúlfe, Adoufe, Adufe e Adulfe.

Atualização:

Ríos Camacho (2009) identifica Adoufe e Tadoufe com addúff, que em árabe clássico é “pandeiro”. Porém, embora exista uma certa penetração moçárabe no território da Gallaecia, o referido nesta nota sobre -ulfe > -oufe parece ter todas as condições para prevalecer.

LEIA MAIS:

  1. Topónimos germânicos (I): Terminações em -rei
  2. Topónimos germânicos (II): Terminações em -riz
  3. Topónimos germânicos (III): Terminações em -mil
  4. Topónimos germânicos (IV): Terminações em -ulfe, -ufe, -oufe
  5. Topónimos germânicos (V): Terminações em -sende e -sinde
  6. Topónimos germânicos (VI): Terminações em -ilde

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