Toponímia celta (IV): o tema inh-

Inhanho (Cabana de Bergantinhos), Inhovre (Rianjo) e Inhás (Oleiros) são topónimos na Galiza cujo lema inh- parece ter muito a ver com os hidrónimos Inha e Dinha (< de Inha) que há em Portugal, e também com o rio Em (“inter rivulos Enn et Gorgula“; 940), na zona galega do Gerês, como se verá.

A presença do tema

Poderia considerar-se, em primeiro lugar, que esse *inh- que na documentação medieval aparece por vezes como *ini- e outras vezes como *ign– tenha algo a ver com o étimo latino ignis ‘fogo, lume’. Dad que Inha, Dinha e Em são nomes de rios e que tanto Inhanho como Inhovre e Inhás estão relacionados também com hidrónimos, interessa observar como a relação da água com o calor está presente em formas como Fervença e Ola (= remoinho), e também em Águas Caldas (cf. nos numerosos Caldas, com perda do apelativo “água”, que há tanto na Galiza como em Portugal), em Águas Quentes ou em Rio Caldo, por citar apenas uns exemplos evidentes. Porém, como bem aponta Domingos A. Moreira (1999), o latim ignis não produziu novos étimos nas línguas romances, com exceção do romeno, de modo que a raíz *ign- poderia dever-se, muito provavelmente, a uma simples latinização forçada nos textos latinos e medievais. Aliás, há constância de hidrónimos com raiz ini-/inh- em áreas alheias ao domínio linguístico latino. Em concreto, constate-se a existência de apelativos em euskera que, com essa raiz, pertencem ao campo semântico da água: inontz (orvalho), iñetazi (saraiva), iñoski (líquido) e iña (vime); mas também do raio: iñar, iñestue e iñastura. Seja lá como for, precisamente a existência destes étimos bascos dá para considerar que, à margem de que os hidrónimos mais afastados possam ter alguma outra origem, os máis próximos, os galego-portugueses, tenham uma origem mais que provável nesse lema *ign-, provavelmente proveniente do indoeuropeu *pen-. Vejamos como.

A evolução *pen- > *in-

Se considerarmos esta raiz como estando na origem dos casos a estudo, há que explicar a perda desse p- inicial, que se mantém noutros lugares, com as suas transformações correspondentes. Aí estão, com efeito, o gótico fani ‘lama’, o holandês veem ‘charneca’, o antigo islandês fen, o antigo alto alemão fenna, o inglês fen e o saxónico fen(n)i, todos eles significando pântano e todos eles germânicos, tendo em conta a sabida evolução p->f- nessa rama. Fora dessa família germânica e, portanto, fora da transformação p->f-, há também, no domínio balto-eslavo, o antigo prussiano pannean, como o mesmo significado pantanoso, e o letão pane: ‘água de esterco’. Mais claramente, há os rios Panissos e Peneiós na Grécia, e também o rio Panaro na Itália, que são ambas áreas de conservação do p- inicial. Para Moreira, o grupo de hidrónimos *pan– / *pen– que ele mesmo refere não teria nada a ver com Inha e Dinha, que identifica como provenientes de uma raíz indoeuropeia *ini– / *ign-, de origem mediterrâneo-asiático-ameríndio.

Uma hipótese

Ora, tendo em conta a localização de Inha e Dinha a norte de Portugal e as ocorrências de Inhanho, Inhovre, Inhás e Em na Galiza, ainda completadas com o Enna e o lago Enol nas Astúrias, parece arriscado descartar, como Moreira, a possibilidade de provirem da raiz *(p)ign- / *(p)en- / *(p)an-. Note-se, à partida, a presença nesta área de etimologia céltica, que, como se sabe, perde do p- incial indoeuropeu. Em segundo lugar, observe-se a ocorrência de enach em antigo irlandês, an em irlandês medieval e anam em gaulês, significando os três pântano e ficando, morfologicamente, muito próximos de Inha e as suas derivações Dinha, Inhovre, Inhanho e Inhás.

Em consequência, poderia considerar-se que os casos a estudo derivem quer do éuscaro, quer, talvez mais propriamente, do céltico da área norte-ocidental da península ibérica (está aí a hipótese das ligações entre o celta nor-ocidental e o éuscaro, contudo), em cujo caso esse tema inh- teria, provavelmente, o significado de pântano. ***

Referência:

Moreira, Domingos A., “Perspectivas para a Interpretação linguística do hidrónimo “Inha”, em Carlos Alberto Ferreira de Almeida: in memoriam, vol.II, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp.107-119.

Atualização (7 de fevereiro de 2012, 23h38)

Introduzo o topónimo Inhás (Oleiros), que não aparecia inicialmente no artigo. Obrigado, Carlos, polo seu contributo (comentº).

7 respostas

  1. Bom dia. Tem Edelmiro Báscuas um artigo (acho que em "Estudios Mindonienses") sobre o topónimo "Mondonhedo" em que analisa vários topónimos com raiz inh- (entre eles Inhovre e Inhás), relacionando-os com um radical *en- que, se mal nom lembro (falo de memória, com todas as limitaçons que isso implica), conetaria em última instáncia com a conhecida raiz hidronímica *an-.

  2. Vejamos. Inhás, segundo penso, deveria estar incluído no grupo formado por Inhovre, Inhanho e Em. O mau de fiar-se de bases de dados é que, quando não estão completas (na do SITGA-IDEG falta, para a minha surpresa, a referência de Inhás!), dão-se erros, como neste caso. Para Inhás, sem dúvida, o mesmo que para Inhovre e para Inhanho.

    Quanto a Fene, se te referes a uma possível relação com as formas germânicas *fen-, não me atrevo a descartá-la completamente, porque há muito poucas certidões plenas neste campo da etimologia toponímica, mas, em cómputos globais, a presença germânica na toponímia dá-se principalmente através dos antroponímicos dos possuidores. Neste caderno poderás encontrar referências aqui: http://nomesdopais.blogspot.com/search/label/germanos Em qualquer caso, para Fene tem-se apontado habitualmente a referência ao feno. Agora mesmo não estou em disposição de dar mais dados (escrevo de memória), mas Fene será tratado com o resto dos corónimos municipais galegos que estou a elaborar e que irão sendo publicados devagar neste caderno.

  3. Ulmo, desconhecia esse artigo e não sou capaz de encontrá-lo. Contudo, a relação de *inh- com *en- e com *an-, é perfeitamente plausível. A explicação que eu achei foi esta, que não me parece impossível. Enfim, bendita insegurança a nossa! 🙂

  4. Isso é o bom da toponímia, que sempre nos mantém numha gozosa margem de insegurança 🙂
    O artigo é este: Bascuas López, Edelmiro (2001): "Mondoñedo y Valoría", Estudios Mindonienses, nº 17, pp. 423-490.
    Por outro lado, o fato de estes topónimos apresentarem essa nasal palatal obrigam a umha especial cautela, pois o [i], ainda que pode ser etimológico, pode ser igualmente resultado da inflexom dessa consoante palatal sobre umha antiga vogal pretónica inicial de articulaçom nom palatal (perdom polo mal que explico, mas refiro-me a casos como medieval Alhói > moderno Ilhói etc.).
    Salutaçons.

  5. Olá. Pola minha experiência, e lamentavelmente, os resultados do 'buscador avançado' do SITGA hai que toma-los cum grano salis. Faltam máis dos próprios nomes das freguesias do nosso país, e o nomenclátor empregado penso que nom é o oficial, senom o do IGE (= INE). De feito, o pior é nom saber que está aí e que nom, grrr! Quero pensar que nom foi desleixo, senom ''recorte presupuestario''.

    Sobre Inhovre, abeirado à ria de Arousa, e só por aquilo de juntar referências, Blanca Maria Prósper já avançara em 2002 umha proposta baseado num céltico *(p)en-yo-bris, de "pantano, comparable al nombre del rio austriaco Inn < Enios".

    Penso também que do germánico *fanjan temos o nosso 'fananco' 'planta palustre' (Sarmiento), via umha forma já evoluída, e com geminaçom da nasal por efeito do iode, *fanning-/*fenning- 'relativo ao pántano'. Fene, que debe proceder dum *Fenni / *Finni, nom ser se terá a sua orige num nome de possessor.

    Parabéns, meu. Que trabalho!

  6. É fantástico ter a ajuda dos companheiros Ulmo e Cossue. Muito obrigado. A respeito do que diz Ulmo sobre a relação Alhói > Ilhói e sobre o [i] como resultado não etimológico, que é bem possível, o próprio Cossue tem um excelente e profuso trabalho onde se encontra referência de Anhovre.

    http://frornarea.blogspot.com/2011/12/brigs-e-briga-ii.html

    Seguindo a explicação de Ulmo, bem poderia esse Anhovre estar etimologicamente relacionado com Inhovre. Uma das possibilidades que aponta Prósper é similar para ambos: *(p)anyo-bris > Anhobre e *(p)enyo-bris > Inhovre.

    Enfim: bendita insegurança!

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