Toponímia maior da comarca dos Ancares

⮑ Serra dos Ancares

Os Ancares, a serra que hoje faz de limite oriental à Comunidade Autónoma Galega, mas que geograficamente oferece um contínuo com a comarca irredenta do Berzo, é também o nome que recebe a comarca histórica e administrativa conformada polos atuais concelhos de Bezerreá, as Nogais, Baralha, Cervantes, Návia de Suarna e Pedrafita do Zevreiro, em território administrativo galego, mais o concelho de Candim, em território administrativo leonês. Atravessada por vários afluentes do rio Návia, limita a norte com a comarca de Burom, a oeste com a comarca de Sárria, a sul com o Courel e a leste com o Berzo.

§ 1. O topónimo Ancares

O topónimo Ancares, na sua extensom mais reduzida, corresponde a um vale onde hoje se situa o concelho de Candim (graf. esp. Candín). Em 1787, o Censo de Floridablanca já recolhe umha jurisdiçom de Ancares, integrada por oito vilas: Candim, Pereda, Sorbeira, Vilasumil, Sortes, Espinhareda de Ancares, Lumeiras e Vilarbom, com os seus topónimos convenientemente castelhanizados. A denominaçom do vale, que na realidade se corresponde com o do rio que o atravessa, estendeu-se posteriormente ao conjunto da serra e daí, recentemente, foi convertido em corónimo comarcal institucionalizado pola Junta da Galiza.

Existem várias propostas etimológicas. López Ferreiro e Millares Carlo consideram Ancares como variação de Antares (que existe no vizinho vale de Valcarce) e que se relaciona com o étimo anta. Com essa referência, César Varela pergunta-se —mais bem retoricamente— se anticares (com evolução normativa *ant’cares > ancares) nom poderia corresponder com a denominaçom antiga das atuais palhoças, com refúgios para gadeiros ou gado no meio do monte, com hórreos, etc. Mas, de novo, parece que estejamos a confundir o campo semántico, afastando-nos da hidronímia e tomando como primeira referência o monte e, neste caso, as atividades económicas relacionadas com ele.

Ninguém explica, aliás, essa variaçom, *ant- > *anc-. Apenas Peinado Gómez, que diz ser umha anomalia fonética produzida polo contacto do romance com o árabe no seu momento — um argumento pouco claro no plano histórico e geográfico, em qualquer caso. Outra opçom apontada é que tenha a ver com o latim ancariu ‘asno, animal de carga’, mas aí encontraríamos o contra-argumento de determinar em que medida um apelativo assim tam comum por toda a parte poderia dar nome a todo um vale. Por último, há teorias que o relacionam com a raiz indoeuropeia *kar- ‘rocha, elevaçom’. A problemática desta explicação nom é só resultar tam pouco clara como qualquer outra que remontar ao indoeuropeu, mas insistir no orónimo, antes do que no hidrónimo.

Penso, com efeito, que Ancares é hidrónimo antes de ser nome de vale (ou simultaneamente, em funçom da íntima relaçom geomórfica entre os rios e os seus vales); e vale antes de ser nome de comarca. Como adequar a raíz *kar- a esse valor hidronímico? Talvez como um rio de pedras?

Finalmente, há a possibilidade de procurar umha explicaçom em tempos mais afastados. Moralejo Álvarez mostrou bem como o ide. *-h3n•-k– (com concreçom céltica –anc– e latina –enc-) está presente na hidronímia galega; mas apenas se referiu a ele como sufixaçom, com valor expressivo ou aumentativo. A questão é: pode esse elemento, com esse valor, ter também funcionado como protema outrora? Nom parece provável.

Pokorny (WP. I 60 f.), porém, sim estabeleceu um tema *ank– com o significado de ‘flexom, curva, giro’, que semanticamente parece estar mais próximo do conceito hidronímico e que tem bastante descendência em toda a família indoeuropeia. É a mesma raíz do grego ἀγκών, com o mesmo significado, com realizaçons em -s- e -l-, susceptíveis de rotacismo. É também a origem do ἄγκυρα ‘áncora’, que passou via latina ao nosso idioma. E, em latim, é também a origem de ancus ‘pessoa trenca’ e de ancrae ‘vale, gorja’, muito próximo do germánico *angra– e de Ancares. Ademais, pola rama céltica, está também na origem do galês anghad ‘mão’, do galorromano ancorago ‘anzol’. Sem estar completamente convencido — pois nom sou quem de explicar a sobrevivência de *anc- em lugar de *ang-, entre outras cousas —, penso que por aí possa ser rastejada a origem de Ancares. Com todos os poréns do mundo.

§ 2. Baralha

Baralha aparece em documentaçom latina diversa. Por exemplo,

[in valle de] Pineira, ripia de Neira, villa que vocitant Baralia

Samos, 1125

Menéndez Pidal identificava esse Baralia como procedente de *varalia, do latim vara, significando ‘seto de travesseiros’, provavelmente seguindo Du Cange (1493), que dá o significado de ‘paliçada’. Contudo, nenhuma ocorrência encontro desse *varalia.

Costa (2009) explica bem por que, em qualquer caso, é pertinente desligar Baralha da possível relação com o vara latino, e, ainda, oferece umha outra explicaçom para o topónimo, relacionando-o com os conceitos de ‘parlamento, debate, desputa’ em relaçom com o castro e topónimo de Baralhovre. Mesmo assim, a teoria de Menéndez Pidal continua tendo força na atualidade e a inexistência documental de *varalia pode vir a resolver-se no futuro.

§ 3. Bezerreá

A etimologia popular de Bezerreá narra a história de um bezerro que se safa de ser vendido para sacrificar na feira local. A explicaçom, por mais simpática que for, nom deixa outra opçom que a de procurarmos umha alternativa.

Para Piël, Bezerreá estaria relacionado com um proprietário latino, sendo o sufixo -ana > -á a pista principal para concluir um *Bezerreana que nom aparece na documentaçom. Caridad Arias considera, na mesma linha, umha uilla *beceriana, onde a forma *beceriana derivaria do patronímico Becerius, cuja forma Becius e Vecius aparece documentado epigraficamente. Tanto *becerreana como *beceriana som, em qualquer caso, puras reconstruçons que o único que deixam claro é a mecánica de formaçom do topónimo: mais umha vez, como posse.

§ 4. Candim

Embora Candim nom faga parte dos concelhos administrativamente galegos da comarca dos Ancares (fai parte da comarca administrativa do Berzo), fai todo o sentido a sua inclusom neste grupo pola sua localizaçom geográfica, ainda sem ánimo de polemizar sobre a questom dos limites territoriais.

Etimologicamente, como a maioria de topónimos com esta terminaçom -im, fai referência ao nome do possuidor, Candinu, genitivo Candini. A uilla Candini é hoje Candim, com o apelativo já perdido. Sem necessidade de muita mais explicaçom.

§ 5. Cervantes

É comum referenciar a etimologia de Cervantes como relacionada com os cervos. Mas, sobre o tema céltico *cerv- já falamos neste caderno, e apontamos para umha raíz indoeuropeia *kerbho- ‘alto, corno’ que parece estar por trás de outros topónimos como Cervo, Cerveira, Cervanha e também mais aparentemente afastados como Corunha, Corcubiom, etc.

§ 6. Návia de Suarna

Eis mais um topónimo composto por relaçom geográfica: o lugar é Návia, e Suarna é território mais amplo, do mesmo modo que acontece com Cabana de Bergantinhos ou com Póvoa de Varzim.

Analisando Návia, e longe de explicar o nome por pretensamente ter um treito navegável o rio (!), o certo é que a raíz *nav, com valor de concavidade do terreno, depressom, está bem documentada. Mesmo assim, tenhem aparecido outras hipóteses que relacionam Návia com umha divindade fecundadora pré-romana presente na Gallaecia e bem relacionada com a hidronímia, tanto na Galiza e em Portugal, onde há os rios Návia, Navea e Neiva, como na vizinha Asturias (Naviegu, Navelgas, Navidiellu ou Nalón (antigo Nauilo), como ainda noutras áreas celtas: Naver, na Escócia, Neber e Naseby em Inglaterra, etc. Leite de Vasconcelos relacionou a Návia divindidade com o sánscrito navya ‘curso de água, rio’, abrindo assim espaço para umha clara identificaçom de Návia com umha deusa fluvial — além das ré-significaçons que podam dar-se polo tratamento das águas na cultura celta, que nom é caso tratar aqui. Mesmo assim, a raíz nav- com valor orográfico nom colide com a referência sánscrita nem com a referência ao panteom celta na Gallaecia.

Quanto a Suarna, embora seja a explicaçom mais repetida a de sub + arna, a resposta nom parece assim tam evidente. Nom há documentaçom medieval, ou quando menos eu nom a conheço, de *Subarna. Isso levou académicos como Edelmiro Bascuas a pensar que mesmo a divisom continuar a ser su + arn-, esse primeiro elemento nom fosse equivalente ao moderno ‘sob’, plenamente latino e sem dificuldade, mas um protema pré-romano, provavelmente indoeuropeu, com valor qualificativo ‘bom’. Seja como for, isso deixa a raíz *arn- que já vimos também bem relacionada com a hidronímia: Arnoia, Arnego, Arnal, etc. Seria entom umha variante do radical *er- ‘mover-se’, com o mesmo significado ou, mais concretamente, por palavras de Bascuas: “algo que se move, se eleva, cresce, se lança ou corre”. Todo isso que fam os rios.

Em resumo: Návia é hidrónimo ou entom é teónimo fluvial. Suarna pode denominar umha terra por baixo do rio (um bocado estranho), ou a zona de um rio bom (cfr. as inúmeras ocorrências de Riobom, Riomau, e construtos deste tipo como topónimos).

§ 7. Pedrafita do Zevreiro

Do mesmo modo que no caso anterior, estamos perante um topónimo composto. O primeiro elemento, pedrafita, nom requer muita explicaçom. Umha pedra fita é um fito, umha demarcaçom territorial ou geográfica básica, através do elemento singular dumha pedra colocada horizontalmente, chantada, de forma natural ou por açom humana.

A procedência é latina, sem dúvida: petra ficta. Assim aparece na documentaçom em 1600, e assim se relaciona com outras Pedrafita, outras Parafita e Perafita e mesmo, se calhar, com outros casos como [Pedra] Chantada (< lat. plantata = ficta) das que há boa mostra na Galiza e em Portugal. A ausência dessas pedras concretas também nom deve surpreender se considerado que na antiguidade provavelmente tivessem qualquer sentido religioso relacionado com a sua forma fálica, e que desde aquela até hoje tem havido, ademais do esquecimento que sempre ocorre, diversas tentativas de limpeza do passado, por motivos diversos.

O outro elemento, Zevreiro, tem mais dificuldade. No Códice Calixtino aparece como Mons Februarii, mas parece umha vulgar (e errada) ré-latinizaçom. Para Moralejo Lasso, poderia haver relaçom com o zevro, um équido selvagem que deveu habitar a Galiza até ao século XIV e que hoje está extinto. Outros autores apontam para umha relaçom com a árvore do aciveiro. Ora, como já comentamos para Cervantes, também nesta comarca, convém nom deixar-se ir com a referência fácil aos cervos, ou ainda aos zevros. Porque cervos e zevros houve, provavelmente; mas umha cousa é havê-los e outra serem tam significativos que deixem zootopónimo — tendo em conta, aliás, como é comum os zootopónimos esconderem outra realidade. E o mesmo para os fitotopónimos.

Ainda, sabemos que a raíz *kerbh-o indoeuropeia tem dado em galego-português formas facilmente confundíveis por essa via. De modo que é provável estarmos perante um simples orónimo, com umha sufixação tam comum que até resulta indecifrável. Proponho, por isso, descartar as explicaçons que falam de equos feros ‘asnos bravos, zevros’, por mais atractivas que forem essas evoluçons *equisferarium > *ecisfrararium > *cesbrarium > *cebrarium > zevreiro . Tenho a sensaçom de que estejamos perante algo muito mais prosaico.

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