Notícias do Reino da Galiza num relato cruzado de 1189

Rei Luís IX da França durante a sétima cruzada, iniciada em 1248. Contodo, ilustra bem o uso de barcos para chegar à Palestina e à Síria histórica.
⮑ Rei Luís IX da França durante a sétima cruzada, iniciada em 1248. Contodo, ilustra bem o uso de barcos para chegar à Palestina e à Síria histórica.

Vam já publicadas algumhas outras notas sobre ocorrências relacionadas com o Reino da Galiza em documentaçom estrangeira medieval e moderna. Muitas delas oferecem essa caracterizaçom política, embora o território estivesse já sob soberania castelhana. Outras vezes, os testemunhos som umha fonte interessante de toponímia. O trecho de texto que vem a continuaçom fai parte do primeiro grupo, e oferece quase nengumha informaçom a respeito dos nomes de lugar.

Algumhas ideias prévias

Intitulado posteriormente Narratio itineris navalis ad Terram Sanctam, trata-se do relato dumha expediçom de cruzados alemáns em direçom à chamada Terra Santa. Umha viagem que começa em Brema e se interrompe abruptamente nas Bocas do Ródano, perto de Marselha. Quando menos na cópia que chegou a nós e que deixa a hipótese de se tratar dum texto truncado. Portanto, deve haver, por descobrir, umha outra parte a falar da travessia entre Marselha e Jerusalém.

Escrita em latim, num estilo direto e sem figuras retóricas, com abundáncia de referências temporais concretas, serve como crónica da expediçom, e também como medidor de distáncias. O autor, todavia, é-nos hoje completamente desconhecido. Apenas se intui ser germánico. O uso da milha teutónica, referências ao regno Teutonico e ainda várias comparaçons como a do Tejo com o Elba e a de Silves com a cidade imperial alemá de Goslar apontam nessa direçom. A respeito destes pormenores, serve consultar o texto de Armando de Sousa Pereira, que se centra no que tem a ver com Silves, mas oferece informaçom interessante como contexto.

Cabe, em qualquer caso, dar ao autor anónimo reconhecimento polo notável cuidado que pujo na transcriçom dos topónimos. Também na nomeaçom dos reinos, castelos, portos e rios; e até nas aclaraçons a respeito dalguns deles, para evitar confusons. Deixou, claramente, um texto pensado para a posteridade e de grande interesse para nós, mesmo que nom fale profusamente da Galiza para além do rio Tambre e do sepulcro compostelano. Tampouco há constáncia certa da data de escrita. A tomada de Jerusalém por Salah ad-Din em 1189 e a bula Audita tremendi de Gregório VIII devem servir de marco cronológico à viagem. Estamos na época em que começa a chamada Terceira Cruzada.

Por último, convém notar que o texto foi traduzido para o português por João Baptista da Silva Lopes, a pedido da Academia de Ciências de Lisboa. A traduçom é de 1844, mas acabou por converter-se em referência para diversas ediçons posteriores, também noutros idiomas.

A continuaçom é transcrita, da traduçom de Silva Lopes (na íntegra na ediçom digitalizada da Universidade de Toronto), o trecho correspondente à Galiza, com a grafia da época. O original em latim pode ser consultado na íntegra no CODOLGA.

A traduçom de Silva Lopes (1844)

Tomando por exemplo o providente costume dos antepassados que entregávão á escriptura os seus feitos para que não escapasem ao conhecimento dos vindouros, resolvi-me a escrever com singeleza os muitos e variados succesos da derrota naval dos peregrinos que se dirigírão a Jerusalem.

Destruida a Terra da Promissão por Saladino, Soldão do Egypto, no anno da Encarnação do Senhor 1187, tomadas as cidades, mortos ou cativos os habitantes; a voz dos prégadores retumbou em toda a Christiandade promettendo grandes indulgencias em nome da Santa Sé Apostólica a todos os que se deliberassem a hir recuperar aquelles lugares; em razão do que se moveu muita gente de todas as classes, d’entre as quaes alguns quizerão hir por mar fazendo longas e penosas peregrinações para remissão de seus pecados.

[…]

No dia nono entrámos em hum porto junto do qual demora o castello de Gijon1No original, Goyeum pertencente a el-rei de Galiza, e a cidade de Aviles. Deve notar-se que nos preitos nove dias deixámos á esquerda a Gasconha, o reino dos Aragonezes, o dos Navarros, o da Espanha; e nos achámos em frente do reino de Galiza. E deve também notar-se que sendo cinco os reinos dos Hespanhoes, a saber, o Aragonez, o dos Navarros, e o daquelles que especificamente são chamados Hespanhoes, cuja metrópole he Toledo, e também o dos moradores da Galiza, e o dos Portugalenses, os quaes o mar cerca por todos os lados excepto por hum, todos confinão com o mar da Bretanha, pelo qual temos vindo navegando, e também com os Sarracenos que [habitão] nas praias do mar que lhes fica opposto, de sorte que tem de os atravessar todos quem quer que queira hir ao último, o de Portugal.

No decimo dia, deixando as náos no porto, partimos para a cidade de S. Salvador, que fica a 6 legoas de distancia. Aqui achámos o Santuario ceio de diversas reliquias de Santos, dignas da maior veneração, as quaes no tempo da perseguição [palavra obliterada] tinhão sido transferidas de Jerusalem por medo dos inimigos, e trazidas para Hispali, hoje Sevilha; de Sevilha para Toledo, de Toledo para Oviedo, a qual cidade agora he conhecida com o nome de S. Salvador. Nas costas de Galiza só vimos rochedos escabrosos; e toda ella he montanhosa e aspera, não produz vinhos, e os seus habitantes usão principalmente da bebida da cidra (vinho de maçãs ou peras).

No undecimo dia voltámos para as náos, e no decimo terceiro perto do crepúsculo nos fizemos na volta do mar. No decimo quarto, vespera de S. João Baptista, e no mesmo dia da sua festividade, com vento de feição chegámos na tarde do dia Santo ao porto de Tambre que he hum rio que corre na Galiza. Deixando ali as náos, e caminhando por terra hum dia inteiro, fomos visitar o sepulchro de S. Thiago, que já tinhamos deixado atrás. Na hida e vinda, e demora no porto aguardando vento gastámos sete dias.

Mettemo-nos a bordo das náos na oitava de S. João Baptista pela volta do meio dia, e no seguinte dia ás mesmas horas avistámos de perto das costas de Portugal, e dalli soprando ventos favoraveis embocámos no terceiro de madrugada o porto de Lisboa, o qual porto he a fós do Tejo, que baixa de Toledo, e aqui desagoa no mar. [continua]

Galiza na Narratio itineris navalis ad Terram Sanctam

Antiquorum provide consuetudini morem gerens qui gesta sua scripture laqueis innodare satagerunt, ut posteritatis noticiam non evaderent, itineris navalis multiformes eventus qui peregrinis Ierosolimam tendentibus acciderunt, simpliciter explicare decrevi.
Anno siquidem dominice incarnationis M.º C.º LXXX.º VIIº a Salahadino rege Egypti destructa terra promissionis, captis urbibus captivatis vel necatis incolis predicationis tuba cum indulgencia apostolice auctoritatis late per Christianorum terminos evagata ad restaurationem miserabilis cladis innumerabilem movit populum. Inter quos quibusdam placuit per longissimos tractus maris peregrinando suorum pro abolitione criminum erumpnosa semita protelare.
[…]
Nono die portum intravimus, prope quem castrum est regis Galicie Goyeun et opidum Abilen. Et notandum, quod predictis novem diebus Waschoniam, regnum Aragonum, regnum Navarrorum, regnum Ispanie a sinistris reliquimus et iam in regno Galicie fuimus. Considerandum etiam, quod, cum sint quinque regna Ispaniorum, videlicet Arragonense, Navarrorum et eorum qui specificato vocabulo Ispani dicuntur, quorum metropolis est Tolletum, item incolarum Galicie et Portugalensium, et eos ex omni latere, preterquam ex uno, ambiant mare, omnia habent terminos versus mare Britannicum, per quod venimus, et limites habent contra Sarracenos qui [habitant] in margine oppositi maris, et ita, qui ad ultimum id est Portugalensium regnum ire vellet, per omnia transsire deberet.

Decimo die naves in portu relinquentes ad sanctum Salvatorem profecti sumus civitatem que a portu sex leucis distat. Ibidem invenimus archam repletam diversis magna veneratione dignis et sanctorum reliquiis que tempore persecutionis eodem propter metum hostilem ab Iherosolima translata in Affricam, inde in Ispalim que nunc Sibilia, ab Isspali in Tolletum, a Tolleto in Ovetum, quod nunc sancti Salvatoris nomine pretitulatur. Nota, quod in costa Galicie nonnisi arduas rupes vidimus; nam et ipsa tota valde montuosa est et ideo difficilis et non vinifera, cicera maxime utens.

Undecimo die ad naves regressi et tertiodecimo circa crepusculum ad mare reversi sumus; quartodecimo id est in vigilia Iohannis Baptiste et [in] ipso festo valido flatu velis turgentibus in vespera diei sancti ad portum venimus Tambre que est aqua fluens per Galicia. Ibi relictis navibus per longam dietam regressi limina sancti Iacobi, que iam transsieramus, visitavimus. In eundo autem et redeundo et moram in portu pro ventorum prestolatione faciendo [VII] dies peregimus.

In octava Iohannis circa meridiem naves conscendimus et sequenti meridie Portugaliam e vicino vidimus. Inde ventis prospere spirantibus tercio die diluculo portum Ulixibone intravimus, qui portus est ostium Tagi, a Tholeto venientes et in mare ibi fluentis. [continua]

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